quinta-feira, 2 de julho de 2015

Destrinchando o Muk Yam Jong, o boneco de madeira do Wing Chun, em uma análise de caso. Parte II

Pois é, assim como o personagem do game Tekken, Mukujin (木人) lit. Pessoa de Madeira, Uma corruptela de seu alter ego, Muk Yan Jong (木人樁), Pilar do Homem de Madeira, hoje no mínimo você se liberta de algumas ideias prontas quando se trata de treinamento chinês tradicional. 


Vou começar pedindo ao leitor que viu a sequência que escolhi para análise na primeira parte deste artigo que assista o vídeo abaixo em que executo informalmente a nona seção do boneco (em duas partes complementares para os dois lados), repare novamente nas fotos em destaque, e, depois de ler as legendas e visualizar melhor a movimentação, tente imaginar você mesmo uma aplicação lógica para os dois últimos movimentos da sequência numa luta livre, sem medo de errar. Por enquanto peço ao leitor que desconsidere os movimentos finais que se repetem por cada uma das onze seções da forma. Vamos lá?

A propósito, mais abaixo coloquei duas fotos do próprio Patriarca Yip Man* executando os movimentos para que haja uma melhor contextualização do posicionamento. 



Antes de ir a um evento beneficente pedi a minha filha pequena para me filmar fazendo a sequência de forma lenta e fluída.


Como a interpretação mais óbvia dos primeiros movimentos foi abordada na primeira parte da matéria, vamos nos deter nos próximos movimentos abaixo:




1. Bong Sao. SiFu Marcos caminha para a sua direita enquanto executa o movimento com seu braço esquerdo. A mão de trás (direita) fica em Wu Sao (護手), uma guarda clássica de vários estilos de Kung Fu. Em seguida, um pequeno semi-passo seguido de pivô e,


2. Tan Da Chai Gerk. Tal como na forma Sil Lim Tao, o Bong Sao da foto anterior (braço esquerdo) se transforma em Tan Sao dando uma ideia de transformação e fluidez.  a perna de SiFu Marcos sobe na transição e logo desce para um forte pisão na "perna" do Muk Yam Jong. 


3. Na foto, fica mais claro o deslocamento lateral do Grande Mestre para sua direita.



4. Embora a sequência se feche pelo mesmo lado, esta foto vista pelo lado oposto mostra melhor tanto a profunda simetria quanto a semelhança conceitual entre os movimentos da perna e do braço embora, na forma, a função da perna seja o ataque simultâneo à defesa na parte de cima



Bem, aí você me faz lembrar que o exemplo de aplicação que mostrei na primeira parte do artigo não seria muito diferente de "lutar" contra o boneco. Realmente. A defesa era feita na forma por dentro (Noi Moon) dos braços do boneco e o exemplo aplicado da mesma forma. Concordo. Mas aquela não é a única interpretação possível. Eu poderia, por exemplo, ter feito a mesma técnica defendendo pela "Porta de Fora" (Oi Moon) que inclusive é mais comum em nossa escola. Confuso? Vamos ver o que acontece se interpretarmos as defesas literalmente como vemos na forma e as colocamos tal como são na aplicação solta, vejamos o Bong Sao: 



5. Oops, saiu algo errado. Deve ser porque o João socou de cima pra baixo.



6. Soco de Wing Chun de baixo pra cima, mesmo resultado. Ainda que o oponente tivesse socado com o outro braço nos dois casos o resultado não teria sido muito diferente. A defesa não é impossível, mas muito difícil, nesta postura.


Bong Sao (膀手) em cantonês quer dizer, literalmente, braço alado. Podemos ficar aqui imaginando as origens históricas do termo, se teria sua origem na imitação da asa garça, uma vez que também há movimentos que mimetizam a movimentação da serpente, outro animal simbólico associado às raízes históricas reais ou imaginárias do sistema Wing Chun, a depender do estilo abordado. O fato é que, hoje, três séculos e meio de evolução depois, é melhor dizer que não imitamos mais os movimentos ou a forma física dos bichos míticos, mas o comportamento dos mesmos em combate, suas estratégias, por isso mimetizar a movimentação do animal deixou de ter importância. Sendo assim gostaria de apresentar uma outra tradução do termo, que, como verbo, poderia ser traduzido como "parar". Observe a foto abaixo, onde o Bong Sao é executado no exercício Tang Chi Sao (單黐手): 



7. Bong Sao em Tang Chi Sao



Neste caso o Bong funciona tal foi idealizado originalmente porque ambos os jogadores estão posicionados de forma ideal e já tem, de saída, o contato, ou seja, a sensibilidade tátil para ANTECIPAR a movimentação do oponente de acordo com a teoria do sistema. O próprio exercício foi desenvolvido para que se exercite a teoria de forma lógica e sem pensar, por instinto. Repare que a mão do oponente não consegue sequer sair para desferir propriamente o soco. Em situações em que treino a "anti-esgrima" com meus atletas do MMA**, este movimento, em especial sua versão mais baixa (Dai Bong Sao) é usado para que o adversário não acesse sua cintura ou axila no trabalho de grade.

Contudo, uma vez que o soco seja disparado de longe, a defesa exatamente como feita originalmente não surtirá efeito. Não importa o quão boa ou bem posicionada seja a defesa, ela não irá "parar" nada, pois só pode fazê-lo interceptando na saída. No boneco é a mesma coisa. O posicionamento e o contato com "membros" do mesmo ocorrem na curta distância, os movimentos, como nas demais formas, são "elementos técnicos" chaves-mestras, não movimentos especializados. Todos sabem, em qualquer cultura, o que é um triângulo, mas um triângulo é antes de tudo uma ideia que pode assumir diversas formas, ainda que obedeça aos princípios que o definem como tal. Assim sendo, para a média e longa distâncias, posições em que é também preciso saber lutar Wing Chun há que se fazer uma adaptação dinâmica e passível de mudança todo o tempo, de forma aguda (no calor do momento) e crônica (adaptando-se às mudanças cíclicas das estratégias e modismos das artes marciais, mais do que nunca conectadas pela era da informação e do esporte de contato). 


Vejamos uma possível interpretação literal técnica que se segue: 



8. Tan Da Chai Gerk em Wing Chun San Sik



Parece um pouco melhor, não? Particularmente eu acho a foto um bocado bonita. É meio exótica, não lembra um pouco uma figura de Shiva***? Executo em cima novamente um Tan Sao com Dai Jeung só que desta vez pela "porta de fora" com um forte pisão (Chaai Gerk踩腳) na perna da frente. Gosto de fazer alguns movimentos variantes deste durante a prática do Seung Chi Sao (雙黐手), mas, cá pra nós, não parece ao leitor uma técnica com um grau de alto de dificuldade de aplicação numa luta solta? Se o sujeito estiver avançando com dois movimentos rápidos, qual a possibilidade que teremos de nos adaptar sem sermos atingidos e/ou jogados para trás com o impulso do oponente, principalmente se ele vem com tudo, como ocorre com frequência nas lutas de lutas de rua? 

Eu gosto bastante do simbolismo dessa técnica, e gosto da possibilidade de pisar a perna da frente do meu adversário lutando contra atletas, coisa que faço muito em meus combates, mas note que a própria combinação já admite que você deve estar precavido na parte de cima. Vamos ver agora uma adaptação alternativa para as duas técnicas, sem desrespeitar a teoria do sistema, com a ajuda de meu aluno Fabio, estudante do nível Chum Kiu (尋橋):

9. Vai rolar agressão. Hau Mah.


10. Bong Sao adaptado com Jam Sao como mão de guarda. 

11. Bong se transforma em Tan, em cima, e Tan Lan Gerk em baixo

12. A mão livre segue para a frente em Yat Ji Jung Choi


13. Meu aluno João (calção vermelho) aplica a técnica durante luta de Muay Thai. Alguns anos depois ele nocauteria com técnica de Wing Chun no mesmo estádio, sagrando-se campeão estadual.




Na sequência acima temos uma situação onde na iminência de rolar um combate, já posiciono minha perna atrás na base em Hau Mah (foto 9) levantando as mãos o mais rápido possível. A um aluno meu aconselharia a bater primeiro, mas a depender da situação isso não é possível. Em lutas de rua quem bate primeiro quase sempre vence, e a possibilidade de defender algo que vem de lá é muito mais alta quando se tem os dois braços erguidos. Note que a partir do momento em que muda a minha base e meu corpo fica por algum motivo um pouco mais de lado, muda-se o referencial de Linha Central que sempre deve ser lida como a menor distância entre você e seu adversário. 


Fábio lança um atípico direto de esquerda (foto 10). Não importa. Fosse de direita a defesa seria a mesma, você não terá tempo para escolher. No Wing Chun real não ficamos esperando "ver" o golpe para depois escolher qual defesa fazer, pois isso quase nunca funciona. Com pequeno passo para trás eu cubro meu rosto com Bong Sao, com um Jam Sao (枕手), (ou Pow Jung Sao em algumas escolas) eu ajudo a melhorar a cobertura em cima. Escondo meu queixo um pouco atrás do ombro, cancha de combate, enquanto expondo meu cotovelo contra os dedos de Fabio. Caso o oponente esteja sem luvas, existe uma possibilidade real de fratura. 

Junto com o movimento de defesa meu corpo acompanha a trajetória do golpe girando para minha direita Mencionar este giro é fundamental para que o leitor acompanhe a dinâmica de transformação de um elemento técnico "simbólico", recurso recorrente nas AMTC***, para uma técnica de luta específica e que deve ser treinada exaustivamente para que funcione. Quando eu trago meu quadril durante o passo em Bong Sao no Muk Yan Jong e eu estou na verdade apenas repetindo um padrão presente na segunda forma Chum Kiu (
尋橋), quando andamos numa espécie de base híbrida. Pense, a técnica não foi bolada assim à toa, temos de ser perspicazes para interpretar. Você não está em Toy Mah (Empurrar a Base), mas em Joh Mah (Girar a Base). Este padrão será repetido, mas como técnica mais acabada, na forma Baat Jam Dao (八斬刀), com as facas. Lembre-se não há nada no Muk Yam Jong que não seja praticado nas formas anteriores. O número 108, usado desde tempos imemoriais associado à medicina e artes marciais orientais, significa domínio pleno sobre um ciclo e  sua conclusão. Não à toa Yip Man associou a forma a este número poderoso.   






14. Na foto executo Bong Sao andando em base "híbrida" durante a forma Chum Kiu (尋橋): caráter simbólico e adaptável das técnicas de Wing Chun. 





Bong Sao em Muk Yan Jong sempre "chama" outro movimento complementar, para finalizar a sequência, pois nunca é um fim em si mesmo, estático, mas um movimento de transição, como os são o pequeno e grande Gahn Sao e Kwan Sao (que também é composto por um Bong) e que são repetidos com ele por toda a forma em movimentos que invariavelmente fazem uma trajetória espacial de base triangular pelo chão, em torno do boneco, como se se abrissem e fechassem "portas" de ataque, defesa e ângulos todo o tempo. Isto te dá uma dica importante para bolar treinamentos de técnica de luta dois a dois do tipo "pergunta e resposta" compostos de dois ou três movimentos. Esqueça essa ideia idiota dada por mestres de pensamento curto que dizem que você irá resolver tudo num só movimento, a partir de uma base estática, que ficar fazendo lutinha ali vai fazer alguma diferença. Tente ler a mensagem que a forma te passa. Está tudo ali. Não a subestime jamais. Um mestre só pode lhe ensinar metade do sistema, o resto você terá de pegar sozinho. Wing Chun foi sabiamente desenhado assim por nossos ancestrais. Estará sempre protegido das pessoas de menor perspicácia. 


Continuando a sequência (figura 11), aproveitando a biomecânica favorável à transformação do "Bong" em "Tan", recorrente por todo o sistema, executo o contra-ataque seguindo essa lógica cíclica Bong/Tan. Uma vez que você tenha treinado esta combinação ficará muito mais rápido levar seus membros para o espaço "vazio", pois é para lá que você deve correr com sua técnica de Wing Chun todas as vezes que cobrir um lado. Independente de ser ou não atacado, você deve correr para fechar a área que você abriu, e não pode de forma alguma esperar pelo adversário. Essa tem de ser uma reação automática, de forma que você não tenha de pensar na defesa, mas no ataque! No caso, pelo hábito de realizar a defesa previamente, milhares de vezes, minha perna já sobe antes mesmo de Fabio chutar, fazendo ambos, perna e braço, um bloco que fechará toda a área. Em geral, praticantes de Wing Chun esperam para tentar "ver" e sem seguida pisar o chute, ao invés de cobrir. Não é preciso dizer o quanto isso pode ser falho, se você errar o tempo. Se você fecha toda a área, fica mais fácil inclusive de pisar sem levar um chute no queixo. O soco concomitante à defesa visa principalmente coibir um contra-ataque, pois muitos lutadores, em especial os de Muay Thai podem te socar mesmo que você segure a perna deles em pleno ar.

A foto 12, embora um tanto borrada, mostra a defesa completa. É como se se meu lado direito inteiro estivesse protegido por um grande escudo enquanto golpeio reto como uma espada. Repare que o peso do corpo pende levemente para a frente na aplicação, enquanto a perna de apoio fica um pouco mais atrás. Isso visa que o peso do chute do oponente não me jogue no chão. Fabio é bem mais leve do que eu e não corro perigo. Mas e se fosse o contrário? Lembre-se que no Wing Chun já pressupomos de saída que nosso adversário é maior, mais alto e mais forte do que nós.


Por fim, a foto 13 é para fazer o leitor desconfiar um pouquinho que entendo do que recomendo. Nela, meu aluno João Gilberto, depois de oito meses treinando esta técnica comigo, a aplica num campeonato lutando contra um Thai boxeador. Muitos lutadores depois dele, treinados direta ou indiretamente com esta técnica que eu trouxe ao Brasil com outros irmãos kung fu, e depois adaptei um pouco à nossa realidade, a aplicaram em combate com sucesso. A técnica de Wing Chun aplicada em combate que apresento a vocês não é tão plástica quanto se vê comumente nos vídeos, mas é perfeitamente passível de verificação prática. Acreditem, dado o baixo nível técnico do Wing Chun no mundo inteiro, isso é um bocado de coisa.




Esperar para defender tudo o que chega quase nunca funciona. Infelizmente essa é tida como uma das principais estratégias do Wing Chun e o estudante é levado a crer que, se treinar bastante, um dia terá a habilidade final de tudo defender. Pessoas jogam anos de suas vidas de treino fora tentando "reagir", quando a real teoria do sistema envolve "antecipar".  





Conclusão


No texto anterior combato algumas ideias que, embora pareçam ter uma lógica aos olhos do leigo, não são menos equivocadas a respeito da prática com o Muk Yan Jong. Vamos recapitular? 

1. Não se "luta" contra o boneco propriamente dito, ao contrário do que se possa imaginar. Esqueça essa ideia idiota. Quando da execução da forma não se está enfrentando necessariamente, obrigatoriamente, pelo menos, um oponente posicionado de frente pra você, contorcendo-se para pegá-lo pelos flancos. As técnicas podem ser interpretadas individualmente em ângulos e ordem cronológica de encadeamento diferentes dos de uma luta literal (e unilateral) contra o boneco. Libertar-se deste equivoco te dará a possibilidade de entender um "segredo" sobre a prática do boneco que esteve ali para você o tempo inteiro.

2. Alta velocidade de execução da forma não denota habilidade do praticante. De fato, o Wing Chun foi desenvolvido para pessoas que não são rápidas ou talentosas, você usa a técnica e a estratégia do estilo, baseados em leis da física e visão objetiva e simples do combate para quebrar o ritmo do inimigo. A prática da forma com velocidade excessiva torna as posturas defeituosas e gera maus hábitos que refletem ignorância a respeito da real função do aparelho. Pense que você defende e ataca ao mesmo tempo frequentemente; isto te obriga a posicionar bem o corpo para reagir explosivamente. Como fará isso tendo de se movimentar em torno do aparelho todo o tempo?

3. A visão utópica e alienante das escolas de que apenas saber a forma e prática-la tal como se apresenta em sua sequência, sem qualquer elaboração de técnicas de lutas dois-a-dois com consequente treinamento de repetições, adaptações e sparring livre, seria suficiente para que a técnica surja holisticamente de algum lugar misterioso da mente quando alguém estiver tentando te amassar. Acredito particularmente que os mistérios da mente funcionam melhor se você trabalhar bastante com o que você tem para só depois esperar a mágica holística aparecer. Não à toa sujeitos esquisotéricos são fascinados pelo aparelho. 


4. Talvez o mais importante de tudo: nunca praticar no Jong imaginando que está vendo e bloqueando golpes que chegam, parando braços ou pernas a partir de uma posição estática e por demais grudada ao boneco; esta é a ideia mais perniciosa ao Wing Chun de uma forma geral é grandemente influenciada por quem superestima trabalho de Kiu Sao (Braços em Ponte), comum no sul da China em vários estilos e que em nossa luta é expresso no Chi Sao Lap Sao Faat. Essa visão de prática com o boneco é aquela que é passada nos filmes de artes marciais, por ser esteticamente agradável e fortemente impressionável. Existe uma espécie de desespero por encurtar a distância a todo custo. Isso não funciona. Novamente sugiro a leitura de meus artigos anteriores.

Não pretendo aqui esgotar o tema. Nem poderia. Há um mundo de coisas sobre o Muk Yan Jong para serem estudadas, e não apenas tecnicamente, mas histórica e culturalmente. É um assunto fascinante, se encarado com menos exotismo e mais seriedade. A ideia deste artigo foi, a partir de um lance corriqueiro de escola e posterior reflexão, dividir uma visão de utilização do boneco de madeira que acredito que será muito útil e fará com que muita gente comece a empregá-lo de modo mais prático. Aprender a sequência do Manequim de Madeira é fácil. Desmontar a sequência teórica e remontá-la em prática lógicas, estratégicas e aplicáveis de acordo com os conceitos originais do sistema Wing Chun, treiná-las exaustivamente dois a dois para só então aplicá-las em luta é algo raro e para poucos. Gostaria de voltar no futuro analisando os movimentos de transição, estes que não abordei que fazer parte do trecho apresentado aqui. Mas ficará para uma outra ocasião.



Forte abraço.


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*Yip Kai Man (1893-1972) é sexta geração do sistema Wing Chun. Tendo saído de Foshan para ensinar em Hong Kong em meados do séc. XX, seu mais famoso discípulo, Bruce Lee, tornou o Wing Chun mundialmente divulgado e famoso. Uma série de filmes recentes retratando a vida do mestre vem sendo lançados, sendo que os que tem Donnie Yen interpretando o mestre nas telas reacenderam mundialmente o interesse do público por esta arte chinesa.
**Vide texto sobre o autor ou o link "depoimentos" no site http://www.brazilianwingchun.com 
***Lord Shiva é uma das principais divindades do Hinduísmo. Refiro-me às figuras do deus representado na forma Nataraja. Vale dizer que não por acaso a representação de deuses indianos parecem descrever movimentos de artes marciais antigas. 
****Artes Marciais Tradicionais Chinesas.

domingo, 21 de junho de 2015

Destrinchando o Muk Yam Jong, o boneco de madeira do Wing Chun, em uma análise de caso. Parte I

Treinar forte depois de velho, trabalho doloroso. Depois de praticar três vezes os 108 Muk Yam Jong e mais oito rounds pela manhã, não resisti à tentação e fui boxear à tarde.


À primeira a vista a foto acima, em que fui pego meio distraído descansando junto a meu boneco após prática de drills de luta, parece destoar um pouco. Mas foi justamente este contraste, ou melhor, essa íntima complementariedade, que vou provar logo mais ao longo do artigo, que motivou esta matéria. Muito embora o boneco de madeira do Wing Chun, o Muk Yam Jong (木人樁) seja talvez um dos aspectos mais curiosos e fascinantes da prática de Kung Fu para o público leigo, aparecendo com frequência em séries e filmes de artes marciais para a satisfação de praticantes de qualquer estilo de luta, parece ser um pouco estranho estar todo paramentado para sparring perto de um boneco que não irá reagir a seus movimentos. Entretanto, quando alguém imagina para que serve este instrumento, tanto leigos como até mesmo alguns praticantes avançados e instrutores (!) tendem a imaginar que estamos numa terrível e excruciante luta contra o mesmo, espancando-o sem dó em um (suposto, na maioria das vezes) show de habilidade e velocidade, e não raro tendemos a achar vídeos de pessoas lidando assim com ele. 



A gravura faz uma piada, mas reflete como os praticantes de Wing Chun veem o Muk Yam Jong.



Em meu perfil do Facebook as pessoas vem me perguntar, por exemplo, para que serve o "terceiro" braço, e ainda não menos raro eu respondo com a piada do seringueiro, o que mesmo choca alguns não acostumados comigo, tal é a sanha e mesmo fetiche de alguns ao insistir em possuir um exemplar em casa, tal qual aqueles que tem uma esteira ou bicicleta ergométrica no quarto e acham é que a questão é apenas estar sobre os mesmos e se mexer até cansar, sem maiores preocupações sobre o porquê  e como usar o boneco de madeira e o que a sua prática irá trazer de mudanças efetivas para a prática de luta livre.

Evitei até hoje aprofundar-me neste assunto devido à dificuldade de se abordar o mesmo, preferindo falar indiretamente dele para ilustrar alguns conceitos, ou melhor, o que "não fazer" quando se trata se usar o equipamento. Fiz uma critica à visão que os leigos tem do uso do boneco associando-a à alienação promovida por parte das escolas do Wing Chun em prol de visão de combate muito distante da realidade aqui mesmo neste blog, no texto: O Robô Wing Chun aqui e a Cabeça Pensante e não pensei em voltar ao tema senão depois de ter colocado um aparelho de alto padrão em minha escola - bons bonecos são raros ainda no Brasil - e praticar mais constantemente do que já fazia, mas não havia imaginado como abordar o tema. Em um artigo chamado Por que o "treino" de Anderson Silva com o Boneco de Madeira não é tão ruim para o Wing Chun? em meu website fiz também uma crítica da repercussão negativa do fato do fenômeno do MMA ter sido filmado ensaiando alguns movimentos canhestros no mesmo algum tempo atrás.

Até que semana passada, no meu treino pessoal que visa a adaptação esportiva do Wing Chun às lutas de ringue com meu aluno e campeão de Muay Thai, João Gilberto, para melhorar o desempenho de meus atletas de MMA, a seguinte situação ocorreu durante a "trocação", aquela troca franca de golpes que por vezes ocorre (e que nós do Wing Chun devemos evitar gratuitamente) em luta:




Durante a aproximação João joga um cruzado com a mão da frente, visando começar um "combo"  que segue normalmente com direto de direita ou mesmo canelada, por isso mesmo os cruzados no Muay Thai tendem a ser mais abertos que os do boxe, por exemplo. Na segunda foto, ao "ver" (na verdade, se não estiver muito treinado, "ver" apenas não funciona, como abordarei adiante,e no segundo artigo, por isso grave isso!) o golpe chegando cubro automaticamente com um Tan Sao (攤手), para fechar a área aberta, neste caso podendo chama-lo, neste caso, de Gau Sao (手), Mão de Socorro, como pode ser visto, para ficar só em um exemplo simples para iniciantes, na segunda parte do Sil Lin Tao (小念頭), a primeira forma do sistema, seguindo a mão livre para a frente (terceira foto)após a defesa. Depois do sparring deste dia, como se a mesma movimentação tivesse se seguido algumas vezes, discutimos opções para que eu desse sequência à situação e aproveitasse o contra-ataque surpresa combinando com alguma outra coisa pois, ao contrário do que boa parte dos wingchuners pensam, ninguém mata ninguém com um só golpe. Este tipo de defesa, só pra constar, é extremamente sofisticada e uma necessidade quando se confronta lutadores de ringue, uma vez que o soco tradicional do sistema Wing Chun vem de baixo para cima, o que nos deixa frequentemente expostos a golpes que vem do alto. Infelizmente a maior parte dos lutadores de Wing Chun negligencia este fato, pois estão preparados apenas para defender de golpes de outros lutadores de Wing Chun. 

Quando, ao cair da noite do mesmo dia, eu praticava a sequência formal do boneco de madeira antes de receber meu alunos para a aula da noite, despreocupadamente, enxerguei a mesma situação da manhã durante a prática da nona seção do mesmo, segundo a sequência abaixo:


Jong Sao


Tan Sao

Wang Jeang

Bong Sao

Tan Da Chai Gerk


Acredito que seja fácil para o leitor, mesmo o leigo, identificar a situação que ilustrei acima nas três primeiras fotos, mesmo que nesta aplicação espontânea em luta as mãos estejam mais altas. Talvez se eu mostrar o exercício formal de reflexo tátil do Wing Chun, o Chi Sao, em sua forma Tang, unilateral, isso fique ainda mais claro:

Hoi Moon Tan Sao

Wang Jeung


Nas fotos acima eu redireciono o braço de João para fora, criando um espaço que invado na sequência com uma das Cinco Palmas do sistema Wing Chun, Wang Jeung, Tanto na sequência do Chi Sao quanto na forma do boneco de madeira podemos fazer uma analogia com os métodos do Tai Ji Quan uma vez que a ideia é redirecionar a força vindoura de forma suave e com o mínimo de força. Nos dois casos o Tan Sao é feito com um pequeno "gancho" que visa evitar que o oponente consiga dar a volta por cima do seu golpe com facilidade, obrigando-o a fazer um círculo ainda maior que o necessário, o que nos dá tempo suficiente para golpear com facilidade em linha reta, a via preferida do lutador do sistema.

A soma de diferentes treinamentos, simbólicos, de reflexos e uma adaptação para luta com uma técnica montada e repetida centenas e centenas de vezes é que dá a memória muscular necessária para improvisar de forma natural como neste caso que aconteceu como resultado de minhas experiências como praticante e que quis dividir com vocês por aqui. Simplesmente esperar que aconteça na luta nunca funcionará, talvez somente nas raras situações onde temos tempo para fazer bloqueios. Mas bloqueios são lentos e quase nunca funcionam. Gravem isto.

Entretanto, mesmo acreditando ter explicado a situação que motivou a feitura de artigo, ainda não saímos do lugar comum da interpretação do uso do boneco de madeira, uma vez que podemos ainda visualizar a mesma ainda de certa forma como uma luta contra o "Homem de Madeira". Mas e o resto da sequência da nona seção da forma Muk Yam Jong que apresentei acima, qual seria a aplicação em luta da mesma? Será assim tão óbvia de demonstrar um exemplo corriqueiro, literalmente? Se você leu este artigo e os demais que coloquei nos links acima já está familiarizado com minha crítica à prática do boneco associada às vias de fato contra um oponente imediato. Não pretendo aqui, de forma alguma, escrever algo definitivo sobre os 108 movimentos do Muk Yam Jong, o que seria objeto de um livro. Mas acredito totalmente que na segunda parte do artigo eu possa tirar boa parte das dúvidas sobre o assunto e fornecer uma boa luz para os praticantes de Wing Chun de qualquer linha que queiram trazer o treinamento para um outro nível e fazer da prática no boneco mais do que um ritual exótico e imbecil de prática física e suor sem resultados práticos em luta livre.

Continua...

domingo, 5 de abril de 2015

O que você fará com o que aprendeu? A volta do blog do SiFu Marcos e a celebração daquilo que temos.


Dido executa o soco Din Choi que usa o ombro como referencial para a linha central. 


Durante toda a minha trajetória no Kung Fu (功夫) - e lá se vão 23 anos respirando isso todos os dias com toda a força do meu coração - muita gente boa passou por minha vida. Muitas pessoas se foram para não mais voltar e outras ficaram, algumas ainda por perto, e outras pouco mais de longe. Sou grato a todas elas. Mas minha intenção com este texto é dizer que algumas pessoas são fundamentais para te darem pequenos indícios e insights sobre qual é o seu papel no mundo. Precisamos que em algum momento alguém te diga o que o mundo - mesmo que um mundo muito particular - precisa ter de você.

Ainda muito novo tive alguém para me dizer que um dia eu teria um papel dentro daquilo que eu faço em meu país, dentro do mundo particular e multifacetado do Kung Fu. A princípio eu não dei muito crédito, porque eu tinha a meu redor pessoas muito melhor dotadas de talento e eu não imaginava como vindo de onde vim e sendo tão pobre eu poderia chegar a algum lugar nas artes marciais. Mas também é fato que muitas dentre as pessoas dotadas de talento não se esforçam o suficiente para explorar seu potencial e nunca saberão onde poderiam ter chegado se simplesmente tivessem continuado. Então, mesmo sem grande talento para o Kung Fu, continuei, e provavelmente por não ter este talento todo, ser realmente chinfrim, treino mais do que outra pessoa que já tenha conhecido pessoalmente em meu ramo.

João em treino na Tailândia: atenção para o maior bem que temos em nossa escola, os estudantes



Uma das coisas que mais me incomodam a esta altura da vida é não ter tido o reconhecimento que achei que deveria ter tido; não um reconhecimento egoísta, vindo somente do ego e para alimentá-lo exclusivamente, mas aquele que me desse mais forças para continuar a fazer o mais amo, lutar e treinar Wing Chun Kuen (拳), coisa que em geral faço de forma muito natural, pois às vezes, como todo mundo, desanimo e me sinto sem forças. Sinto vontade de desistir. Mas insisto, pois sei quem eu sou e qual o meu papel, e mais que tudo, tenho compreensão plena da extensão de meu poder pessoal. Eu sei não posso fazer nada em relação a fatores externos maiores que minhas forças, ou consertar o passado. Mas há algo que eu posso, sim, fazer. Cuidar para que meus estudantes não tenham este tipo de frustração. Isso eu posso fazer. Olhar para trás e saber que fiz o meu melhor, de forma honesta, respeitando os valores de minha arte marcial. E que meus estudantes terão tudo a seu alcance para que superem seu mestre.


Conversando hoje pela manhã com o meu aluno graduado em Wing Chun João Gilberto Silva​, que começou comigo ainda menino (ele também é professor de Muay Thai e atual campeão baiano em sua categoria de peso, tendo nocauteado um de seus adversários com uma sequência previamente treinada aqui na escola), durante o preparo do almoço antes do nosso treino da tarde que terminou inda há pouco depois de seis rounds e mais 4 kg perdidos, lembramos do cara que, com todo o respeito a todos os meus demais alunos pelo Brasil, considero o disparadamente mais técnico praticante de Wing Chun de sua geração que já passou por minha escola, o Aldary Lucena Paiva Neto. Aldary? falando assim talvez poucos dos meus leitores o reconheçam, pois é mais conhecido nas artes marciais como o blogueiro Dido. Acredito que seja, considerando apenas sua técnica pessoal, um dos poucos praticantes deste país realmente com um nível para estar entre os melhores, não apenas do Brasil, mas do mundo, em nossa linhagem. Sim é isso mesmo que você acabou de ler.

João falava-me do Dido entre risadas na resenha costumeira de quando cozinhamos juntos, dizendo, como outros, a exemplo do Lucas Forrest, outro aluno que me fala muito dele​, como é agradável conversar com Dido ao telefone. Dido é a imagem daquele cara "legal", "pra frente" com quem dá gosto conversar. Lembrei-me então que das últimas vezes que Dido me ligara, como ontem, estou sempre correndo, falando de problemas e esquecendo de rir junto, dizendo que tenho de ir e que ele me ligue depois. E isso é um grande erro.

Quando Dido está na cidade geralmente o coloco para ajudar os iniciantes, como ele faz com o jornalista Pedro Moraes nesta prática de Tang Chi Sao


Dido escreve, tem banda de rock, desenha, é multimídia, por assim dizer. Não sei como ele arruma para fazer tantas coisas, e bem. Talvez seja um tanto leviano especular, mas talvez ele seja um destes hiperativos, encarando isso como algo positivo. Casado com a Angel​, que talvez não por acaso também seja blogueira, constrói casa, rala duro nos plantões em seu trabalho em um grande hospital. E treina. Talvez isso seja o que mais me agrada nele. O fato de não vacilar com os treinos. Nem sempre foi assim, desconfio aqui com meus botões. Durante o primeiro nível, quando o questionei sobre a falta do equipamento pessoal de proteção que é indicativo sobre quem está treinando, uma vez que os treinos formais do Wing Chun são doloridos para quem não faz uso deste equipamento, perguntei, à época, a quem ele queria enganar. Que ele poderia me dar desculpas, mas que mentir para si próprio não era apenas triste, mas vergonhoso e deplorável. Que ele não fazia nenhum favor em treinar ou não. Que o dinheiro e o esforço que ele fazia para viajar, afastando-se de sua terra, trabalho e família era antes de tudo para benefício dele próprio, não meu. E o fiz repetir o primeiro nível inteiro, ao invés de ensinar-lhe coisas novas, como havia sido acertado de véspera. Confesso que tive medo que ele sumisse da escola, que achasse que eu queria apenas explorá-lo financeiramente ou algo do tipo. F***-se, pensei. Não iria arriscar a reputação minha escola logo no comecinho tendo estudantes ruins. Como gosto de dizer a quem chega: nossa escola é para todos, mas nem todos são para a nossa escola. Nada pessoal. É comum apostarmos aqui entre nós quem vai ficar ou não na escola. E quando alguém de que não gostamos desiste, há uma espécie de comemoração, como no filme Tropa de Elite. Não que sejamos uma caricatura de escola militar. Não exijo que ninguém que aqui venha seja um atleta. Mas exijo que todos, no momento que aqui estejam, deem nada menos que o máximo de si. Reconheço, para o desespero de alguns dos meus alunos mais preocupados com a sobrevivência da escola, e que detestam meu estilo "sincericida", expressão criada pelo Victor Nunes, que não é algo bom para se dizer em uma atividade também comercial como a minha. Mas é justamente isso, essa sinceridade de propósito que garantiu o respeito que temos até hoje.


Lembro que quando Dido veio entretanto para começar o segundo nível aqui em Salvador, à medida que os dias passavam que uma vez que eu tivesse algumas das técnicas de dois tempos comuns ao Chum Kiu (尋橋), não me lembro de tê-lo acertado uma só vez, e ao perceber isso não consegui fazê-lo, deliberadamente, nos treinos formais, mesmo com ele executando técnicas compostas particularmente difíceis como Gahn Sao (耕手). Lógico que treino é treino e luta é luta, e tenho curiosidade sobre ele se sairá quando chegar a hora certa e o exigirmos aqui pra valer, se esse primor técnico irá aparecer, mas a uma conclusão chegamos eu e João, neste papo durante o preparar do almoço, ao som de The Bamboos. Mas já concluo.


Dido ainda é só um iniciante. Às vezes gostaria que ele escrevesse menos, e menos ainda sobre assuntos e temas de Wing Chun Kung Fu que ele não domina como parte de sua própria carne, pois é isso que um verdadeiro artista marcial, o de verdade, faz; crava o conhecimento a ferro e fogo em sua carne. Tanto seu modo de luta e suas atitudes de homem devem fazer que uma arte marcial viva literalmente em seu modo de se expressar. Como muitos que estão nessa sanha pelo crescimento nessa arte marcial, ele faz isso passados já dos trinta anos, e temo que ele se torne como tantos que conheci ao longo destes anos; uma droga de um político sedento de poder e influência, como acabam ficando todos, ou pelo menos a maioria no mundo das lutas absolutas, que defino como as lutas com foco técnico-mecânico-histórico na famigerada defesa pessoal, onde se esconde a maior parte dos covardes que tem ojeriza a luta, mas adoram lucrar e exercitar sua vaidade através das mesmas. Quando o Aldary publica algo em cascata em várias comunidades, eu penso comigo "Porra, Dido, p**a que pariu, cara, vai treinar, car***o!". É o que penso. Mas quem sou eu para julgá-lo?


Se Dido será um bom lutador ou não eu não sei. Há uma diferença entre fazer técnicas com os compadres e lutar de verdade; muitas vezes uma técnica elegante não resiste ao estresse físico e psicológico, o calor do momento separa homens despreparados de guerreiros, e por mais que se possa trabalhar em cima disso, para alguns realmente não adianta muito. Como já passou dos trinta, se também vai subir ou não num ringue para se testar é com ele. Se ele irá corresponder às minhas vaidades e desejos como seu mestre, se ele irá permanecer comigo ou seguirá outra caminho no futuro, não sei, e, realmente, se eu parar pra pensar, não importa! Como disse acima, as pessoas passam por nossas vidas, e devemos ser gratos. Mas a nossa conclusão, minha e de João nesta manhã, pode ser resumida em uma famosa frase do gibi Homem-Aranha: com grandes poderes, grandes responsabilidades. Ele tem a responsabilidade de continuar treinando, e treinando muito - a despeito de seu talento diferenciado e toda dificuldade econômica que temos aqui no nordeste -  e se tornar um mestre como o  grande homem que pressentimos ser, independente de onde ele chegue com o Wing Chun, uma vez que ele prossiga. Caso não prossiga, caso não se torne mestre, gostaremos dele do mesmo jeito. É a pessoa que ele é que motivou este artigo.


Um dos muitos desenhos com os quais ele ilustra suas ideias no Blog do Dido


Durante mais de um ano estive com este Blog parado tal foi a dor de concluir os artigos sobre a perda de um amigo querido. Agora é hora de celebrar também aqueles que estão entre nós, e são meu bem mais precioso como mestre, as pessoas que por aqui estão passando, neste exato momento. Como diria meu amigo Jorge Mostarda: "O que você fará com o Wing Chun que você aprendeu?" Muitas vezes me pergunto isso. Passo agora a pergunta para os meus: o que vocês farão com o que aprendem/aprenderam? Seja qual a resposta, não deixem de ter esperança. Não deixem de rir com os amigos, pois é para isso que acima de tudo o Kung Fu e qualquer arte marcial e atividade humana serve, para que pessoas relevantes passem e, quem sabe, permaneçam em nossos corações, dividindo as alegrias e agruras desta vida passageira.

E assim, celebrando a vida, aquela que permanece pela memória dos que se foram, e pela alegria dos presentes, retomo a pena no Blog do SiFu Marcos. :)




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terça-feira, 6 de maio de 2014

DEFESA PESSOAL, A FALÁCIA DA PILANTRAGEM MARCIAL - Parte final: Os Vendedores de Ilusões - Como você paga para colocar a vida em risco.


“Tomorrow is the most important thing in life. Comes into us at midnight very clean. It's perfect when it arrives and puts itself in our hands. It hopes we've learned something from yesterday.” 
― John Wayne



LEMBRANDO A ORIGEM DESTES ENSAIOS


Este artigo deveria ser escrito casado com a passagem de um ano do assassinato de meu aluno e amigo, o Delegado de Polícia Civil Eduardo Rafael, em novembro último, depois de ser baleado ao reagir a assalto. Preparei-me para isso. Mas não deu. Passei aquela semana nos preparativos para a lembrança de sua passagem por parte da escola e seus amigos e irmãos de arte, sendo emocionalmente complicado voltar a este assunto de forma um pouco mais fria. Quando perdemos alguém de forma abrupta e violenta, um forte sentimento de revolta e inconformidade nos toma e demora muito a sair. Lembro que nos primeiros meses realmente me considerei bastante culpado pela morte dele, assim como muitos de seus amigos, por diferentes motivos. Mas para mim foi diferente, uma vez que fui o último a falar com ele, e era seu mestre em artes marciais naquele momento, embora ele fosse previamente treinado em close range combat e, no Wing Chun, ainda um iniciante. O ingrediente macabro foi que naquela noite discutimos longamente sobre prós e contra de reações a assaltos.

À medida que o tempo foi passando e que ia escrevendo esta série de esboços, ensaios, eu esperava que a desconfiança que sempre tive da tão aclamada infalibilidade de determinados métodos de defesa pessoal, marcada por algumas ideias soltas, tomasse corpo e desse vazão a uma crítica bem definida e com argumentos firmes. Não, não quero reinventar a roda nem tenho muita esperança de dizer nada que  já não tenha sido dito por gente corajosa e de bom senso, mas de alguma forma usar a responsabilidade social que tenho como mestre e profissional de artes marciais, ao mesmo tempo que resolvo meus demônios internos em relação a este assunto, para que eu tire alguma lição disso e use a habilidade que tenho para expor minhas conclusões dizendo algo útil para as pessoas, fechando este ciclo.


Homenagem preparada para Eduardo por seus irmãos kung fu por um ano de sua passagem. 




PERGUNTA QUE NÃO CALA: ATÉ QUE PONTO ACEITAR O FATOR "FATALIDADE" NAS MORTES VIOLENTAS?

Uma coisa que ficou martelando na minha cabeça durante muito tempo foram dois dados daquela situação fatídica. Fatídica? É isto que precisamente teimo em não aceitar. Eduardo desarmou e atirou num de seus assassinos e no processo foi alvejado pelos demais; Tivéssemos uma situação ideal, com menos gente, provavelmente teria sobrevivido e sido aclamado herói. Mas quantos sobrevivem a este tipo de situação? Ora, no estado de São Paulo, menos de 1% do total de assaltos a mão armada terminam em morte. Na maioria esmagadora dos casos, as poucas mortes se dão justamente pela REAÇÃO voluntária ou involuntária das vítimas, ou da tentativa de fuga das mesmas, sendo ainda menor a parcela de casos em que o o assaltante deliberadamente mata a vítima sem motivo aparente. Entretanto são justamente estes casos mais raros que vão parar na TV, tendo o fator crueldade como critério. Crime violento dá mais audiência, por ser indignante, e essa exposição contínua acaba por incentivar no publico atitudes extremas diante da violência iminente e inescapável. Então outra pergunta, talvez ainda mais pertinente é: para que treinar alguém para tentar algo que provavelmente não vai acabar bem quando se não se é de fato um combatente profissional, uma vez que na esmagadora das vezes o agressor está interessado apenas na obtenção dos bens materiais? Em Cuiabá, as estatísticas mostram que a chances de ser morto ou ferido com gravidade ao tentar a reação num assalto chegam 90%. Sabedor de estatísticas sempre similares a estas, segundo testemunha do crime, Eduardo não pretendia reagir, mesmo estando preparado para isto; entretanto, identificado como policial, não teve escolha, pois neste momento ele se encaixou automaticamente no perfil daquela parcela mais do que mínima de vítimas de quem o marginal deliberadamente tira a vida.

Então, não tinha jeito? É se conformar e aceitar que este tipo de coisa, de repente...acontece com policiais? Bem, isso conduz ao segundo dado, e o que mais me deixa triste; por estes desencontros da vida eu acabei não indo na casa do delegado nas diversas oportunidades que tive. A cerveja e petiscos com mulheres e crianças foram adiados para nunca mais. Ele morava num prédio de esquina num bairro de ruas largas e com diversas saídas rápidas. Tinha de descer de seu Gol 1.6 branco zero km, abrir o portão da garagem, entrar, estacionar, descer do carro e trancar portão. Eu certamente o teria alertado para o que ele já sabia. Uma vítima comum desce, entrega o carro e acabou. Um delegado de polícia, não. Não importa o quão bem você seja treinado, a situação aberta nunca será dada na exatidão do treinamento. Entretanto, para homens de segurança, para estes profissionais que enfrentam todo o carma negativo dos problemas que a sociedade varre para debaixo do tapete, como parte de sua rotina, é preciso estar muito bem treinado para ter uma chance. Ruins que alguns métodos sejam, e abordei um pouco disso neste e em outros artigos desta série, você precisa ter algo, uma referência, um lastro técnico-motor, umas poucas técnicas mais funcionais dominadas para aplicação imediata e outras mais amplas, mesmo que funcionem num nível simbólico, para te dar uma vaga ideia do que fazer.

Falando friamente contudo, o que me diz que isso não foi uma fatalidade foi uma série de coincidências de forças que corroboraram e  culminaram com o sinistro, uma vez combinadas num único e mortal evento: o fato de ser policial e andar armado, ter deixado as armas em local acessível, o terreno, o horário, o objeto de desejo dos bandidos, e, mais do que tudo, a situação de fragilidade em que se colocava voluntariamente todos os dias ao se expor para guardar o seu veículo. Uma vez que fosse possível morrer e voltar à vida, quantas vezes na mesma situação Eduardo teria reagido e tomado a arma do bandido? Em quantas teria sido baleado? E se ao invés de quatro, fossem menos assaltantes? Quanto ele teria de treinar mais para eliminar todos os erros e fazer como num filme, onde tudo dá certo? E por que este raciocínio soa tão estúpido para mim? Se alguém se vê forçado a lutar com estranhos por sua vida, contra a sua vontade, em situação de franca desvantagem, isto na maior parte vezes denota um erro estratégico que irá transformá-lo em mais um número em algum relatório de política pública de segurança.



OS RISCOS DA FALTA DE ESTRATÉGIA E A ORIGEM PLURAL DAS ARTES MARCIAIS

A suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem lutar.” 
Sun Tzu 




Ora, nada me  demove a ideia que tenho de que  um homem na condição dele sabia do risco que assumia se expondo deste jeito todos os dias. E que não precisava ter sido deste jeito. Convenhamos que ajuda muito não dar espaço ao azar.  Tivesse ele conseguido sobreviver e teríamos cinicamente considerado a reação perfeita, a melhor coisa a ter sido feita. Entrevistas na TV dizendo para não tentar isso em casa, que isto só para profissionais, etc. Mas será que treinar diligentemente para se atracar com bandidos na luta pela vida é o melhor que as artes marciais tem a oferecer para seus praticantes? Além: sejamos francos, será isto o mais inteligente em termos de defesa pessoal? Anos de treino para serem postos a prova numa fração de segundos a todo custo? E para provar o quê? Quantas vezes a ação será disparada mais pelo orgulho e pela ojeriza à impotência e a humilhação?

As artes marciais de origem oriental não são um saber flutuante, desapegado de um contexto histórico, mas são também resultado direto da influência de toda uma cultura associada às principais linhas de pensamento/religiões orientais, como o Hinduísmo, o Budismo Chan/Zen, o Taoismo e o Confucionismo. Diferentemente de outras religiões, e escapando à definição ocidental do termo, estas escolas de pensamento não se concentram apenas em resolver uma dada situação através da fé ou do esforço agudo, local e elaborado, mas entender as condicionantes dos processos dinâmicos que levam as pessoas ao sucesso ou fracasso na vida pessoal, social e espiritual em suas bases mais profundas. Elas em geral não se detém nos resultados, ou apenas ainda colocar o sucesso ou fracasso em mãos alheias de um deus, mas dar armas para que cada um faça bem suas próprias escolhas, de forma natural, apenas seguindo uma suposta dinâmica universal, que se expressa no mundo cotidiano todo o tempo, sem nada forçar. Não procuram apontar onde está o "pecado", ou quem o executa, mas evitar o desejo que leva a cometê-lo, ao invés de tentar frear os instintos num ponto onde será impossível fazê-lo.

Este é um dado importante para se entender o modo de pensar associado às artes marciais orientais. Qualquer um com um mínimo de inteligência e planejamento pode suplantar uma situação maior que suas forças, desde que se aja na base, antes que aquilo esteja grande demais. Essa é mesma ideia taoista da não-ação, que não tem nada a ver com inatividade ou passividade. Não sujar a rua ao invés de investir tempo e dinheiro demasiados em vassouras e varredores, por exemplo. Desta e de outras ideias simples evoluíram não apenas o pensamento oriental, mas junto delas a medicina e artes marciais orientais, e durante muito tempo estes conhecimentos  andaram e se desenvolveram juntos. O professor de artes marciais na Índia e China antigos era não raro  o conselheiro, o protetor e o médico da localidade onde ensinava. O convívio com mestre e os condiscípulos nos estudos extra-classe e nos momentos de descontração eram uma extensão, um acréscimo de treinamento informal para a aplicação dos conceitos marciais em diversos aspectos para além da mera troca de golpes. Isto trazia a razão e coerência técnica para fora do local de treino, e vice-versa.


Estátua de Sun Tzu no Japão. O autor da "Arte da Guerra" ressaltava a importância da estratégia na solução de conflitos



O estudo da luta em terrenos, situações políticas e sociais diversas ao longo dos séculos deu origem a variadas técnicas, fantásticos sistemas de luta que muitas vezes dão a chance a alguém de menor porte vencer alguém muito maior ou mais forte, em maior número ou com algum tipo de vantagem em certas agressões simples, ou combates onde ambos os contendedores estão armados.  Em tese, seguindo uma estratégia, e em determinadas condições, qualquer um teria condições de se defender minimamente sua integridade física. Contudo, uma das lições aprendidas no dia-a-dia físico da luta é que não se pode vencer todas as vezes um conflito, mesmo o dos mais simples, mano a mano. Que embora tenhamos poder para matar, devemos estar prontos para morrer, e que ao mesmo tempo a vida é preciosa demais para ser tomada ou dada em vão. Lutar, machucar o outro sem feri-lo gravemente, e mesmo apanhar é um processo através do qual crescemos e aprendemos a dar valor à vida ao mesmo tempo em que desenvolvemos - também - um meio de protegê-la. O jogo do combate, que implica colocar vida em risco em algum nível, e a própria "vida" paralela nas artes marciais eram também um modo de se abordar simbólica e estrategicamente o jogo da vida real: trabalho, amizade, filhos, desafios menos dramáticos e imediatos à primeira vista, mas não menos importantes.

Vivemos agora num mundo muito diferente, onde se por um lado temos a lei colocar ordem ao caos e à barbárie ancestral, esta mesma lei nos desarmou e nos torna dependentes do estado. Se tivermos de enfrentar alguém para defender nossa vida o faremos numa desvantagem nunca vista antes, em especial depois do advento da arma de fogo. Uma bala sai de um revolver, de um mero calibre 38 a mais de 1000 km/h. Um recordista de 100 m rasos atinge uma velocidade média de 45 km/h. Isto não lhe dá muitas opções quando você chega atrasado. Embora não haja leis que nos impeçam de portar armas brancas em nosso país, se o fizermos podemos ou ser detidos ou sermos vítimas do despreparo policial. Embora possamos ter uma arma em casa, dificilmente um cidadão comum consegue o porte de arma. E mesmo que consiga, o fator surpresa num ataque programado por bandidos numa situação corriqueira evidencia o quanto pode ser um mal negócio reagir, uma vez que bandidos já vem com a  segurança da impunidade, num país de proporções continentais, mas com cidadãos vulneráveis e convenientemente desarmados pelas autoridades. Neste novo mundo, pragmático, superficial e imediatista, , as artes marciais se distanciaram das escolas de pensamento e criou-se a impressão - falsa - que apenas a técnica de luta pode ser o componente mais importante para defesa pessoal, quando o que ela pode fazer de fato é te dar recursos para umas poucas situações práticas muito específicas, em sua maior parte a necessária noção contra agressões simples desarmadas e, para os deslumbrados dos sistemas de defesa pessoal que tudo prometem, uma perigosa falsa sensação de segurança.


OS VENDEDORES DE ILUSÕES: COMO VOCÊ PAGA - CARO - POR E PARA POTENCIALIZAR O RISCO.



Séculos atrás, Myamoto Musashi já criticava escolas de artes marciais que supostamente vendiam o segredo do combate em seu "Livro do Cinco Anéis".


Quando nos decidimos por uma arte marcial ou esporte de combate uma série de atributos que desejamos ver assoma à mente; e especialmente quando escolhemos alguma prática para nossos filhos, mais do que para nós mesmos, uma busca de vantagens tem tem início: Preparo físico, qualidade de vida, recreação, contato social, um maior poder de concentração e foco, o "gastar" da agressividade num ambiente seguro, a própria serenidade ou agressividade positiva contidos no local treino, as roupas extravagantes e os ritos bacanas de passagem de nível ou meditação, a disciplina, a possibilidade de evoluir numa área do conhecimento, tudo isto está incluso. Nada disso tem maiores consequências e, na pior das hipóteses, poderá ser uma boa experiência que, abraçando ou deixando para trás, terá sido benéfico de alguma forma; entretanto, quando se fala em Defesa Pessoal a coisa muda de figura. Estamos falando aí de consequências que ao passarem pela porta da academia afora irão desde um simples olho-roxo até a invalidez ou morte. É algo muito sério, que não pode ser comprado, tampouco vendido. Não há qualquer método que garanta sucesso neste tipo de situação, mas este dado, óbvio, a exemplo do governo que te desarmou, será convenientemente escondido pela escola que está a te vender este produto intangível, a defesa pessoal, quase sempre de forma irresponsável.



"Eu estarei com vocês, caras, em um minuto. O mano de vocês está prestes a bater" A charge ilustra com bom humor que mesmo as artes de luta (no caso, um exemplo de luta de solo que numa situação de campeonato estaria praticamente vencida) consagradas podem ter sua aplicação complicada pelo contexto do conflito irrestrito ou "de rua". 





Não há qualquer problema em o cidadão comum estudar um sistema de luta para aprender a se defender minimamente, evitar ser agredido gratuitamente no caminho para escola, no trabalho, no trânsito, no lazer ou nas agressões domésticas e sexuais. Existe antes de tudo o direito de não aceitar ser vítima passiva. Mas há cursos e escolas que envolvem técnicas marciais que se auto-intitulam, antes de qualquer outra coisa, um método que tem como único e objetivo exclusivo cuidar de sua defesa pessoal. Mas isto é uma mentira parcial. Pregam, na verdade, aberta ou tacitamente, a reação imediata a agressões sob a capa desde a defesa da honra, da dignidade, da harmonia exotérica, dum pseudo-militarismo de shopping center. Venha praticar a defesa marcial dos monges budistas. Do exército mais bem treinado do mundo, e por aí vai. Acontece que o perfil deste tipo de público não é o do monge-guerreiro. Não é do soldado. É alguém que em geral ama o simbolismo do negócio, mas passaria bem longe de um conflito, antes de começar a praticar. O soldado, não custa lembrar, é um forçado combatente profissional que está antes de mais nada arriscando a vida, no nível infinitamente maior que o cidadão comum, muitas vezes contra a própria vontade, e sua morte já é dada como certa de saída em qualquer cálculo preliminar estratégico, e muitas vezes oferecida pelo comando como um preço a se pagar num ponto para se alcance a vitória em outro. É disso que trata este último texto. Das escolas que não apenas escondem de você os fatos da maioria esmagadora de quaisquer estatísticas sérias, mas literalmente lhe tiram dinheiro para fazê-lo crer que treinar para reagir vai lhe dar autoconfiança, segurança e paz com seus conflitos internos que às vezes o levaram até ali, especialmente para aqueles que já passaram por alguma situação de violência, ou tem medo, quando na verdade é o contrário, o individuo comum que luta por auto-afirmação, que prefere arriscar a vida para salvar bens materiais que jamais serão tão preciosos  do que estar vivo para usufruir estas e outras coisas, é que está dando uma prova cabal da sua desinteligência e despreparo tático, emocional e espiritual.


As artes marciais são o resultado de uma série de valores culturais ancestrais. A técnica expressaria também fisicamente essa visão de mundo. Que cultura marcial queremos passar às nossas crianças?




TÁTICAS COMERCIAIS PARA VOS EMPURRAR UM ÚNICO PRODUTO: A REAÇÃO.

Em artigos como "ME BATE QUE EU TE MOSTRO" abordei a forma muitas vezes fantasiosa e exagerada das exibições que muitos mestres fazem para demonstrar suas habilidades e impressionar leigos. Ao contrário dos esportes de combate, onde as aplicações técnicas são filmadas e verificáveis, talvez mais facilitadas, dentro de certos limites, pelas regras e repertório técnico, a aplicação de uma técnica treinada num ambiente controlado da academia em um ambiente irrestrito e sem regras é extremamente dificultada pelas variantes de ataque, meios, número de oponentes, fator emocional e, sobretudo, pelo o fator surpresa, que seja reações intempestivas. O Wing Chun, arte marcial que ensino profissionalmente, por exemplo, destacou-se no passado pelo sucesso nas brigas de rua chinesas. É bom (não perfeito, não infalível) e especializou-se para este tipo de ambiente de luta justamente por reconhecer a impossibilidade de se treinar para todos os tipos de situações e ter uma resposta para tudo, por isso trabalha com um número pequeno de conceitos técnicos simples que podem ser recombinados no calor da ação e que cria uma "cultura de planejamento" a longo prazo que propicia no estudante a atitude de visar não meramente defender golpes mas agir nas condicionantes do conflito, taticamente, de preferência antes que o mesmo que o ataque aconteça, projetando um padrão meramente técnico para uma "técnica de comportamento". Um exercício de combate simbólico que internaliza essa ideia de antecipação reflexa no Wing Chun é o Chi Sao.



Meu SiTaiGung (mestre-bisavô na cultura do kung fu) Yip Man pratica Chi Sao com seu estudante Bruce Lee nos anos 50. Exercício para educar a mente antecipar situações perigosas em luta, antes mesmos que elas se configurem em ato físico concreto. Simplicidade como princípio. 





Entretanto, é comum ver tanto no meu estilo como em outros ver a arte ser vendida tendo como único e exclusivo objetivo a famigerada "defesa pessoal" entendida como aí apenas técnica de luta, empobrecendo e limitando suas possibilidades. O profissional de artes marciais que te vende isso está mentindo e te enganando, ingenua ou criminosamente. Ele não está te vendendo a "defesa", ele está te vendendo um produto chamado "reação" que quase na totalidade dos casos de agressões mais violentas irá não te defender, mas POTENCIALIZAR o risco. O cara coloca uma faca na sua frente, você reage. Revólver, cadeirada, gangue etc., pode vir todo mundo, você reagirá e resolverá em segundos. O que te levou a estar naquela posição vulnerável curiosamente não interessa. Preparar o indivíduo de forma global não interessa. Como você irá se gabar de uma luta que foi evitada quando você percebeu que entraria numa fria? O que dá cartaz, o que chama a atenção das emissoras de TV, é o ato do super-herói que resolve tudo sozinho, batendo de frente, por isso o querem para estar sempre um passo atrás, para ser a vítima, para entrar voluntariamente naqueles 90% estatísticos onde a merda (perdão) acontece. O argumento  mais ou menos este: "Vamos tocar fogo neste prédio: não importa o quanto o fogo irá se espalhar, a água que tenho dentro deste balde é superior a todas as outras". 




Mestre de defesa pessoal absoluta ensina como reagir (não se comportar, mas como partir pra cima, mesmo) em assalto a ônibus com o indefectível dedo no olho: Civis amadores e crédulos estimulados a somar-se desnecessária e voluntariamente às estatísticas policiais.




Observe a foto acima. Procurei não identificar o mestre, uma vez que a crítica não é determinado método, mas a postura ética. Numa entrevista (hilária, diga-se de passagem) este homem encheu um ônibus com estudantes para ensiná-los a reagir (não é piada, é isso mesmo) em assalto a ônibus. Ele mostra na TV como você desferirá aquele golpe com que o teu instrutor disse que, se as regras permitissem, ele detonaria o campeão do UFC.  Se vai funcionar ou não na real é muitas vezes uma incógnita, uma vez que certos golpes e combinações nunca foram testados num combate no ringue ou academia pra valer, de tão perigoso que supostamente seria. Este é o perigo das artes marciais "absolutas", métodos criados exclusivamente para situações "reais": seus praticantes em geral não lutam na academia, não tentam aplicar o que sabem em campeonato, e as vezes nem mesmo na academia. Tudo o que você tem é a palavra do instrutor. Que dado você tem de aquilo irá funcionar sem prática prévia? Com o outro cara vindo com tudo pra cima? Armado? E lá vai você, um cara comum, por puro orgulho ou, inda mais perigoso, reflexo condicionado, provoca ou aceita uma briga, tenta desarmar um bandido que não tem nada a perder, mulher, filhos, família ou futuro, simplesmente porque um instrutor de artes marciais disse que na rua é "matar ou morrer, senhores", para ver se tira algum a mais no fim do mês para pagar a franquia de quem lhe vendeu este discurso pronto. Não se iluda, sua ação em campo de batalha será antes de tudo um ato de fé. Boa sorte. Certamente o "morrer" será para você, não para ele, uma vez que o bom vendedor nunca consome a droga que vende ao usuário.



ONDE PROCURAR POR DEFESA

Vou pedir ao leitor que não subestime a própria inteligência e pense que estou dizendo que não se deve aprender a se defender, ou mesmo de aprender a tirar uma arma da mão de alguém, perigosamente desnecessário que seja na maioria das vezes. Novamente, não se está dizendo aqui que não se deve treinar ou estar preparado, nem que os métodos atuais não devam ser aprimorados constantemente. Uma academia de artes marciais contudo é o último lugar numa longa lista de onde você deve procurar quando pensar com seriedade em investir seu tempo e dinheiro em segurança profissional para você e sua família. Um consultor de segurança especializado e experiente funcionará muito melhor.

Defesa Pessoal  hoje em dia, segundo a lógica da burrice vendida nas academias, é um conjunto de técnicas corporais usadas para atuar quando tudo mais deu errado, ou seja, quando na maior parte das vezes você mesmo errou estrategicamente. Um verdadeiro curso de defesa pessoal para civis desarmados com este nome deveria abordar 80% do seu tempo com prevenção, e não com atividade física reativa. As artes marciais, que originalmente eram parte de todo um modo de pensar estratégico que envolvia boa parte dos aspectos da vida do praticante tornaram-se, segundo esta ótica canhestra, um recurso para quando você será obrigado a lutar por sua vida numa situação de desvantagem tão brutal e desesperadora que não haverá outra coisa a tentar. Como vimos estatisticamente, mesmo estas possibilidades de morte, embora existam, são remotas, e quando ocorrem na maior parte das vezes são provocadas pela própria reação em si.


PAPEL DOS VÍDEOS VEICULADOS NAS REDES SOCIAIS DA INTERNET NA CULTURA DA REAÇÃO A ASSALTOS

É muito comum em redes sociais como o Facebook a divulgação de vídeos com cenas de extrema violência, ou com fins políticos ou espontaneamente, para mostrar a indignação popular em virtude da fragilidade da segurança pública no país. São especialmente revoltantes aqueles vídeos em que os assaltantes executam vítimas rendidas sem que houvesse motivo aparente. O pai de família fez tudo certo, não reagiu e acabou morto. Quando discutimos com alguém este assunto, vem lá um vídeo que mostra um caso como este, que leva a revolta e mesmo às lagrimas, ou um daqueles em que surpreendentemente a reação deu certo; alguém sacou uma arma e acabou com todos. Bandido bom é bandido morto. Concordo. Entretanto, vídeos isolados, em especial aqueles que mostram a reação de policiais armados, não dão o grande quadro da coisa. Sugiro aos leitores que vistem um site chamado Onde Fui Roubado : este site agrega vítimas de roubos, assaltos e outros crimes que marcam no mapa o local e descrevem como foram atacadas. Embora o site só compute os dados fornecidos pelas próprias vítimas, isso invalida a tese de maquiagem oficial dos dados, por isso mesmo convido o leitor a fazer um exercício mental simples; ao olhar o mapa do site (o link que disponibilizo dá uma amostra da cidade de São Paulo, preste atenção nos pontos em vermelho, pois eles indicam os assaltos a mão armada. Imagine agora - face ao grande número de ocorrências - se uma grande parcela destes atacados tivesse algum conhecimento marcial e reagisse em defesa de sua honra e bens. Quantos destes pontos em vermelho transforma-se-iam em casos de latrocínio e quantos seriam de uma reação bem sucedida?



O OUTRO LADO DA MOEDA: A ORIGEM EMPÍRICA DA EFICÁCIA TÉCNICA E O DIREITO INALIENÁVEL DE REAGIR (DESDE QUE NÃO FERRE QUEM ESTIVER EM VOLTA) 

Muita gente defende perfis de uma mesma arte marcial de acordo com uma linha ideológica-comercial. Por exemplo, é costume dizer que as escolas de uma linha X seriam de "lutadores" que vão aos campeonatos provar a sua supremacia técnica; uma outra, Y, os "heróis" que treinam para a luta "real" ou briga de rua hipotética, havendo ainda uma Z dos vulgarmente chamados "filósofos" da luta, para quem as artes marciais não serviriam para lutar, mas atingir um nível espiritual superior. Cada um dos mestres que encabeçam escolas com estes perfis marcados ridicularizam ou pelo menos lançam farpas uns aos outros. O filósofo marcial critica o esportista marcial como alguém de pensamento limitado, violento e sem nada a oferecer, que por sua vez ridiculariza os teóricos do confronto aberto, por acreditar que a luta se resume ao que faz no ringue; o praticante de defesa pessoal despreza por completo a experiência de contato físico total dos treinos de luta esportiva alegando que a "luta real" não tem regras, e que os verdadeiros golpes mortais não podem ser treinados para valer na academia. Contudo, se analisarmos as origens das artes marciais mais eficazes, veremos que elas necessitaram - em diferentes momentos de seu desenvolvimento - de pessoas com cada um dos perfis caricatos acima convergindo suas experiências ao mesmo tempo para forjar algo valioso. O sábio desenvolve a teoria, o prático a técnica, o louco faz com que ela aconteça, e por fim o grande vendedor a torna popular. Todos eles são necessários a uma escola que se pretenda completa e se mantenha assim.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que digo ao leigo desavisado que evite a reação desnecessária na maioria dos casos, em especial durante assaltos a mão armada, não se iluda, para que você pratique hoje uma arte marcial/esporte de combate de ponta, algum sujeito no passado deixou de lado o conforto e arriscou a vida ou a integridade física tentando aplicar o que sabe de fato, seja numa competição, seja na rua. Existem sujeitos que vivem suas vidas procurando a morte o tempo inteiro, às vezes para tentar fazer justiça, outras vezes por orgulho, outras por gostar de brigar e subjugar outrem. Mas este tipo de sujeito está deliberadamente procurando por emoções perigosas e está consciente dos riscos envolvidos. Muitos de meus alunos, por exemplo, gostam de estar na noite, no urderground urbano, e por isso mesmo vez por outra se metem em encrenca, por conta do seu estilo de vida. Vez por outra recebo um telefonema ou mensagem via Facebook  sobre alguma luta, e geralmente estudo estes embates para aprimorar meu método de ensino. O que ensino na minha escola entretanto passa pela defesa pessoal não como um fim em si mesmo, mas como um recurso técnico notadamente limitado para situações muito específicas. O que ensino de fato aos que se interessam em proteção pessoal é projetar o saber da arte marcial estrategicamente. O lutador de Wing Chun que usa sua arte não entra para lutar, e sim para vencer, e a vitória sem luta, embora menos dramática, é mais gloriosa, pois é a que gasta menos energia e envolve menos riscos. Se algum de meus alunos - todos adultos -  eventualmente se metem em encrenca, não é por falta de aviso dos grandes riscos envolvidos. Todos tem o direito inalienável de se meter em encrenca, ou de protegerem a própria honra, ou orgulho, desde que tenham plena consciência daquilo que se tem a perder e a ganhar com a escolha pelo combate. E para ganhar algo, sempre perdemos outra em troca. Essa é a natureza cruel das escolhas, e muitas delas devem ser feitas em frações de segundos.

Em alguns estados dos USA as pessoas tem opção do porte de arma. Elas podem levá-las à cintura, bem expostas. A eficácia deste recurso pode ser questionada isoladamente, como no caso de Eduardo, mas será que o sujeito notadamente armado será a vítima preferencial de um bandido, num mundo onde as pessoas estivessem em igualdade de condições e pudessem se armar para escolherem ou não arriscar? E se o banido já saísse de casa tendo a consciência que iria enfrentar alguém também armado? Em que estado um marginal iria preferir atuar? Num com ou sem porte de arma? Bandido gosta de facilidade, e por mais que ele tenha vantagem de saída, ninguém gostaria de atacar alguém que pode revidar à altura. Existem também ataques que não visam apenas a obtenção do lucro nem a simples submissão do oponente, como nos ataques no trânsito, e os de cunho sexual, como o estupro, dos quais muitos terminam em morte, em que a diferença de força estrutura física limitam amplamente a defesa, mesmo de uma mulher ou criança bem treinada. Essa é uma discussão válida para a sociedade, e com ela também viria a responsabilidade civil pelas consequências, uma vez que muitas vezes num tiroteio sobra para quem nada tinha a ver com história.

EPÍLOGO

Pessoas realmente conscientes sabem que por mais haja gastos com cursos, treinamento, armas, equipamento de monitoramento, cães, energia dispensada com orações e ações positivas para a busca da tranquilidade espiritual, nada garante a defesa plena dos seus, porque ela simplesmente não existe. Mas aqueles que conduzem sua vida e ações cotidianas com uma real marcialidade conectada com ações de cunho global, preventivo e inteligente são aquelas que menos dependerão de recursos externos e técnicas marciais para enfrentar a crueldade do mundo lá fora, e, principalmente, serão aquelas mais tranquilas para desfrutar de seus momentos de paz proporcionados pelo treinamento de sua força interior.

Quero dedicar este texto a todos aqueles que não se deixam levar pela imbecilidade que toma conta do pensamento do segmento de arte marcial no Brasil, que não são poucos, mas que certamente não são os mais conhecidos.

Dedico principalmente este texto, como os outros de mesmo título, a Eduardo Rafael: um sujeito inigualável; reto, justo, sorridente, amigo preocupado, policial implacável e competente. Este pai amoroso viveu dignamente e, quando foi necessário, enfrentou o inimigo e a morte como um verdadeiro herói. Sempre permanecerá jovem, com aquele sorriso que era sua marca registrada, em nossos corações.













Destrinchando o Muk Yam Jong, o boneco de madeira do Wing Chun, em uma análise de caso. Parte II

Pois é, assim como o personagem do game Tekken, Mukujin ( 木人) lit. Pessoa de Madeira, Uma corruptela de seu alter ego, Muk Yan Jong ( 木人...