segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Pisa na cabeça - uma rápida reflexão sobre o papel do mestre de artes marciais.

Eu felicíssimo aqui porque depois de uma forte gripe que me deixou duas semanas sem treinar direito, sentindo dores horríveis, consegui treinar bem hoje com meus alunos, contra todos os prognósticos negativos. Eu estou umas 36 horas sem dormir por questões pessoais. Achei que não ia chegar a tempo de ministrar minha aula esta noite, que os caras estariam putos comigo. Eu já saía atrasado quando vi um carro virando à esquerda enquanto um motociclista tentava ultrapassá-lo pelo mesmo lado e a batida inevitável,  baixa velocidade e eu pensei que era só um arranhão quando o rapaz ficou imóvel, pendurado como que jogado para cima, entre sua moto e o carro. Corri como um doido até chegar até ele, e na falta de gente com mais força, vamos "nóis" que somos da boa vizinhança, bons moços caricaturais, previsíveis, pois topamos empurrar carro velho, trocar botijão de gás e atravessar velhinhas para o outro lado da rua e outros bons mocismos.

Acidentes de moto são comuns naquele cruzamento, vi um igual poucos meses antes, os motoristas nunca dão a seta, os motoqueiros sempre tentam ultrapassar partindo de um ponto cego, e todos são culpados.
Bem, o rapaz acordou, eu o retirei da moto, formou-se aquele círculo, apenas umas escoriações na perna e braço direitos, e o cara imprecava que não queria ficar deitado até a chegada do socorro, que tinha de ir ao trabalho, que não podia ter caído da merda da moto, etc., ou seja, ele tava ótimo, enquanto eu checava a chegada da ambulância, maldito curso de socorrista. E os garotos a me esperar no Mo Gwun*.

Eis que passa o rapaz de que citei de passagem outro dia, o instrutor de Krav Maga para quem o negócio é "matar", quando fui assistir ao treino doutra feita, porque a idéia do Krav Maga é semelhante ao Wing Chun em sua especificidade, e não por acaso seus golpes se parecem tanto, e mais ainda com os de nossa família especificamente, a ponto de suscitar desconforto bobo a semelhança, porque o Wing Chun mais antigo. Eu realmente não sei se ele passou direto porque intuiu que estava tudo bem, ou simplesmente achou que não era com ele, ou ainda estava tão distraído que não percebeu nada e achou que aquilo era roda de pagode.O caso é que caso ele tenha percebido, ainda que tenha visto que o rapaz não ia morrer, ele foi extremamente ingênuo sobre o papel de um professor numa comunidade local.

Ora, estávamos na avenida mais cara de Salvador e nela você não aprende a matar com os dublês de soldados do oriente médio por muito menos de 180 reais por mês, embora o único cara que eu vi de passagem, quase despercebido nas sandálias de tira se não fosse o tamanho, nessa avenida ultimamente foi o Júnior Cigano; esse se disser que mata, eu acredito.

O papel de um cara que sabia artes marciais no passado era muito mais amplo do que hoje. A medicina oriental se desenvolveu passo a passo com as artes marciais. O mestre era também o médico, o conselheiro, o educador infantil. Até hoje, as pessoas esperam dele não apenas a técnica, mas o exemplo. Mesmo nessa avenida, tão movimentada existe o microcosmo comezinho derredor: o cara da lanchonete, os porteiros dos edifícios, os professores da escola infantil. Todos se conhecem, se falam, e estão constantemente dividindo suas vidas uns com os outros, como fiz com o segurança que eu achava antipático sem nenhum motivo particular até conhecê-lo - pra valer- hoje, organizando o trânsito e protegendo o acidentado comigo para que não fosse saqueado. Ou o cara da pizzaria que guardou a moto do rapaz na garagem da clínica em frente e acalmava a namorada do cidadão, que estava aos prantos. Todas estas pessoas são formadoras de opinião, e se pararmos para pensar de forma mais ampla, são elas de fato que definem, pra sociedade, não para o status quo, não a faixa na cintura ou a franquia comercial da academia, quem de fato é o mestre.

Lembrei-me daquele dizer do Código de Conduta do Wing Chun de meu SitaiGung Yip Man** sobre usar seu conhecimento marcial para servir a sociedade e ajudar o mais o fraco. Mas em que foi que a técnica me ajudou? Provavelmente nada. Gastei 15 contos de taxi até a academia, e ainda me roubaram a revistinha em inglês que eu deixara junto ao poste com um dicionário na hora da correria. Tivessem levado o dicionário, o ato em si já teria sido uma medida sócio-educativa, porque o oportunista teria aprendido algo novo sobre o idioma gringo. Ahhh, o ladrão é bilíngue! Eu não tinha pensado nessa possibilidade, rapá...

Mas eu fiz o que achei que era certo, senti-me bem pra caramba com isso, e surpreendentemente foi tudo certo no treinamento, mesmo com o torpor do sono. Pena que o rapaz que mata não parou e perguntou pelo menos o que estava acontecendo e se estava tudo bem. Talvez não fosse da conta dele, mas com uma academia há poucos metros do local, não consigo deixar de pensar que a faixa que ele ostenta nos treinos o obrigava a estar ali, pelo menos para mostrar que temos uma responsabilidade, que temos valores e que, sim, isso importa, que se não importasse seria ao menos o nosso dever dar o exemplo. Se fosse para acabar de matar o rapaz tava lá para pisar na cabeça...com todos os diabos!


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*Mo Gwun: lit. Ginásio Militar (marcial) em cantonês.
** Yip Man (1893-1972): Patriarca do sistema Wing Chun em Hong Kong durante a segunda metade do séc. XX, famoso por ter sido mestre de Bruce Lee. SiTaiGung (Mestre-Bisavô na cultura do kung fu) se refere posição genealógica do Patriarca em relação ao autor. N.A.







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