domingo, 5 de abril de 2015

O que você fará com o que aprendeu? A volta do blog do SiFu Marcos e a celebração daquilo que temos.


Dido executa o soco Din Choi que usa o ombro como referencial para a linha central. 


Durante toda a minha trajetória no Kung Fu (功夫) - e lá se vão 23 anos respirando isso todos os dias com toda a força do meu coração - muita gente boa passou por minha vida. Muitas pessoas se foram para não mais voltar e outras ficaram, algumas ainda por perto, e outras pouco mais de longe. Sou grato a todas elas. Mas minha intenção com este texto é dizer que algumas pessoas são fundamentais para te darem pequenos indícios e insights sobre qual é o seu papel no mundo. Precisamos que em algum momento alguém te diga o que o mundo - mesmo que um mundo muito particular - precisa ter de você.

Ainda muito novo tive alguém para me dizer que um dia eu teria um papel dentro daquilo que eu faço em meu país, dentro do mundo particular e multifacetado do Kung Fu. A princípio eu não dei muito crédito, porque eu tinha a meu redor pessoas muito melhor dotadas de talento e eu não imaginava como vindo de onde vim e sendo tão pobre eu poderia chegar a algum lugar nas artes marciais. Mas também é fato que muitas dentre as pessoas dotadas de talento não se esforçam o suficiente para explorar seu potencial e nunca saberão onde poderiam ter chegado se simplesmente tivessem continuado. Então, mesmo sem grande talento para o Kung Fu, continuei, e provavelmente por não ter este talento todo, ser realmente chinfrim, treino mais do que outra pessoa que já tenha conhecido pessoalmente em meu ramo.

João em treino na Tailândia: atenção para o maior bem que temos em nossa escola, os estudantes



Uma das coisas que mais me incomodam a esta altura da vida é não ter tido o reconhecimento que achei que deveria ter tido; não um reconhecimento egoísta, vindo somente do ego e para alimentá-lo exclusivamente, mas aquele que me desse mais forças para continuar a fazer o mais amo, lutar e treinar Wing Chun Kuen (拳), coisa que em geral faço de forma muito natural, pois às vezes, como todo mundo, desanimo e me sinto sem forças. Sinto vontade de desistir. Mas insisto, pois sei quem eu sou e qual o meu papel, e mais que tudo, tenho compreensão plena da extensão de meu poder pessoal. Eu sei não posso fazer nada em relação a fatores externos maiores que minhas forças, ou consertar o passado. Mas há algo que eu posso, sim, fazer. Cuidar para que meus estudantes não tenham este tipo de frustração. Isso eu posso fazer. Olhar para trás e saber que fiz o meu melhor, de forma honesta, respeitando os valores de minha arte marcial. E que meus estudantes terão tudo a seu alcance para que superem seu mestre.


Conversando hoje pela manhã com o meu aluno graduado em Wing Chun João Gilberto Silva​, que começou comigo ainda menino (ele também é professor de Muay Thai e atual campeão baiano em sua categoria de peso, tendo nocauteado um de seus adversários com uma sequência previamente treinada aqui na escola), durante o preparo do almoço antes do nosso treino da tarde que terminou inda há pouco depois de seis rounds e mais 4 kg perdidos, lembramos do cara que, com todo o respeito a todos os meus demais alunos pelo Brasil, considero o disparadamente mais técnico praticante de Wing Chun de sua geração que já passou por minha escola, o Aldary Lucena Paiva Neto. Aldary? falando assim talvez poucos dos meus leitores o reconheçam, pois é mais conhecido nas artes marciais como o blogueiro Dido. Acredito que seja, considerando apenas sua técnica pessoal, um dos poucos praticantes deste país realmente com um nível para estar entre os melhores, não apenas do Brasil, mas do mundo, em nossa linhagem. Sim é isso mesmo que você acabou de ler.

João falava-me do Dido entre risadas na resenha costumeira de quando cozinhamos juntos, dizendo, como outros, a exemplo do Lucas Forrest, outro aluno que me fala muito dele​, como é agradável conversar com Dido ao telefone. Dido é a imagem daquele cara "legal", "pra frente" com quem dá gosto conversar. Lembrei-me então que das últimas vezes que Dido me ligara, como ontem, estou sempre correndo, falando de problemas e esquecendo de rir junto, dizendo que tenho de ir e que ele me ligue depois. E isso é um grande erro.

Quando Dido está na cidade geralmente o coloco para ajudar os iniciantes, como ele faz com o jornalista Pedro Moraes nesta prática de Tang Chi Sao


Dido escreve, tem banda de rock, desenha, é multimídia, por assim dizer. Não sei como ele arruma para fazer tantas coisas, e bem. Talvez seja um tanto leviano especular, mas talvez ele seja um destes hiperativos, encarando isso como algo positivo. Casado com a Angel​, que talvez não por acaso também seja blogueira, constrói casa, rala duro nos plantões em seu trabalho em um grande hospital. E treina. Talvez isso seja o que mais me agrada nele. O fato de não vacilar com os treinos. Nem sempre foi assim, desconfio aqui com meus botões. Durante o primeiro nível, quando o questionei sobre a falta do equipamento pessoal de proteção que é indicativo sobre quem está treinando, uma vez que os treinos formais do Wing Chun são doloridos para quem não faz uso deste equipamento, perguntei, à época, a quem ele queria enganar. Que ele poderia me dar desculpas, mas que mentir para si próprio não era apenas triste, mas vergonhoso e deplorável. Que ele não fazia nenhum favor em treinar ou não. Que o dinheiro e o esforço que ele fazia para viajar, afastando-se de sua terra, trabalho e família era antes de tudo para benefício dele próprio, não meu. E o fiz repetir o primeiro nível inteiro, ao invés de ensinar-lhe coisas novas, como havia sido acertado de véspera. Confesso que tive medo que ele sumisse da escola, que achasse que eu queria apenas explorá-lo financeiramente ou algo do tipo. F***-se, pensei. Não iria arriscar a reputação minha escola logo no comecinho tendo estudantes ruins. Como gosto de dizer a quem chega: nossa escola é para todos, mas nem todos são para a nossa escola. Nada pessoal. É comum apostarmos aqui entre nós quem vai ficar ou não na escola. E quando alguém de que não gostamos desiste, há uma espécie de comemoração, como no filme Tropa de Elite. Não que sejamos uma caricatura de escola militar. Não exijo que ninguém que aqui venha seja um atleta. Mas exijo que todos, no momento que aqui estejam, deem nada menos que o máximo de si. Reconheço, para o desespero de alguns dos meus alunos mais preocupados com a sobrevivência da escola, e que detestam meu estilo "sincericida", expressão criada pelo Victor Nunes, que não é algo bom para se dizer em uma atividade também comercial como a minha. Mas é justamente isso, essa sinceridade de propósito que garantiu o respeito que temos até hoje.


Lembro que quando Dido veio entretanto para começar o segundo nível aqui em Salvador, à medida que os dias passavam que uma vez que eu tivesse algumas das técnicas de dois tempos comuns ao Chum Kiu (尋橋), não me lembro de tê-lo acertado uma só vez, e ao perceber isso não consegui fazê-lo, deliberadamente, nos treinos formais, mesmo com ele executando técnicas compostas particularmente difíceis como Gahn Sao (耕手). Lógico que treino é treino e luta é luta, e tenho curiosidade sobre ele se sairá quando chegar a hora certa e o exigirmos aqui pra valer, se esse primor técnico irá aparecer, mas a uma conclusão chegamos eu e João, neste papo durante o preparar do almoço, ao som de The Bamboos. Mas já concluo.


Dido ainda é só um iniciante. Às vezes gostaria que ele escrevesse menos, e menos ainda sobre assuntos e temas de Wing Chun Kung Fu que ele não domina como parte de sua própria carne, pois é isso que um verdadeiro artista marcial, o de verdade, faz; crava o conhecimento a ferro e fogo em sua carne. Tanto seu modo de luta e suas atitudes de homem devem fazer que uma arte marcial viva literalmente em seu modo de se expressar. Como muitos que estão nessa sanha pelo crescimento nessa arte marcial, ele faz isso passados já dos trinta anos, e temo que ele se torne como tantos que conheci ao longo destes anos; uma droga de um político sedento de poder e influência, como acabam ficando todos, ou pelo menos a maioria no mundo das lutas absolutas, que defino como as lutas com foco técnico-mecânico-histórico na famigerada defesa pessoal, onde se esconde a maior parte dos covardes que tem ojeriza a luta, mas adoram lucrar e exercitar sua vaidade através das mesmas. Quando o Aldary publica algo em cascata em várias comunidades, eu penso comigo "Porra, Dido, p**a que pariu, cara, vai treinar, car***o!". É o que penso. Mas quem sou eu para julgá-lo?


Se Dido será um bom lutador ou não eu não sei. Há uma diferença entre fazer técnicas com os compadres e lutar de verdade; muitas vezes uma técnica elegante não resiste ao estresse físico e psicológico, o calor do momento separa homens despreparados de guerreiros, e por mais que se possa trabalhar em cima disso, para alguns realmente não adianta muito. Como já passou dos trinta, se também vai subir ou não num ringue para se testar é com ele. Se ele irá corresponder às minhas vaidades e desejos como seu mestre, se ele irá permanecer comigo ou seguirá outra caminho no futuro, não sei, e, realmente, se eu parar pra pensar, não importa! Como disse acima, as pessoas passam por nossas vidas, e devemos ser gratos. Mas a nossa conclusão, minha e de João nesta manhã, pode ser resumida em uma famosa frase do gibi Homem-Aranha: com grandes poderes, grandes responsabilidades. Ele tem a responsabilidade de continuar treinando, e treinando muito - a despeito de seu talento diferenciado e toda dificuldade econômica que temos aqui no nordeste -  e se tornar um mestre como o  grande homem que pressentimos ser, independente de onde ele chegue com o Wing Chun, uma vez que ele prossiga. Caso não prossiga, caso não se torne mestre, gostaremos dele do mesmo jeito. É a pessoa que ele é que motivou este artigo.


Um dos muitos desenhos com os quais ele ilustra suas ideias no Blog do Dido


Durante mais de um ano estive com este Blog parado tal foi a dor de concluir os artigos sobre a perda de um amigo querido. Agora é hora de celebrar também aqueles que estão entre nós, e são meu bem mais precioso como mestre, as pessoas que por aqui estão passando, neste exato momento. Como diria meu amigo Jorge Mostarda: "O que você fará com o Wing Chun que você aprendeu?" Muitas vezes me pergunto isso. Passo agora a pergunta para os meus: o que vocês farão com o que aprendem/aprenderam? Seja qual a resposta, não deixem de ter esperança. Não deixem de rir com os amigos, pois é para isso que acima de tudo o Kung Fu e qualquer arte marcial e atividade humana serve, para que pessoas relevantes passem e, quem sabe, permaneçam em nossos corações, dividindo as alegrias e agruras desta vida passageira.

E assim, celebrando a vida, aquela que permanece pela memória dos que se foram, e pela alegria dos presentes, retomo a pena no Blog do SiFu Marcos. :)




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Pois é, assim como o personagem do game Tekken, Mukujin ( 木人) lit. Pessoa de Madeira, Uma corruptela de seu alter ego, Muk Yan Jong ( 木人...