A propósito da quarta edição do livro WING CHUN KUNG FU - A Arte Marcial Praticada por Bruce Lee, que foi lançada pela editora escala, venho aqui falar um pouco deste livro e contar como passei de leitor de livros de Kung Fu a escritor.
Em 2008 conheci o escritor e orientalista José Augusto Maciel Torres, ex-sócio de meu Mestre Li Hon Ki, e tornei-me um colega, freqüentador de sua casa - onde reúne sempre faixas-pretas, terapeutas e figuraças do submundo marcial de Salvador - e interessado ouvinte de seus divertidos "causos" nos anos de militância nas artes marciais e medicina oriental; inteligentíssimo e culto, polemista e conhecido de quase todos os grandes mestres e escolas de luta, suas opiniões sinceras sobre o lixo que envolve os bastidores de muitas artes marciais e as reais origens históricas de outras lhe renderam inúmeros problemas durante os anos 80 e 90. O fato é que ele é o maior escritor de artes marciais do Brasil em número de livros publicados (61) só perdendo para Marco Natali, de quem é amigo pessoal, em número de livros vendidos.
Pois foi justamente o José Augusto quem me convenceu a escrever este livro. Metade das fotos havia sido feita pelo Mestre de Tai Chi Chuan e Wing Chun Aberto França Gomes; seu envolvimento com a medicina chinesa não lhe dava tempo de escrever e, tendo acesso aos originais do livro, fiquei preocupado em dar palpites sobre certos termos técnicos.
Eu relutei em escrever a obra não por não querer fazê-lo mas fazê-lo do meu jeito. Já havia alguns anos escrevendo na internet sobre Wing Chun sob pseudônimo, e me irritava com freqüência em ver que as escolas, tanto aqui quanto fora, ainda vendiam o Wing Chun como o "bombril" das artes marciais. Ainda hoje é conhecido o slogan de Natali "O mais simples e eficiente dos estilos de kung fu". Mas ele mesmo, escritor brilhante, não era culpado daquilo. Essa propaganda sobre os estilos explosivos e mentalistas do sul da China já tinha mais de cem anos de idade, e não era exclusividade do Wing Chun. Nós passamos a repetir a ladainha dos mestres chineses, acrescida de histórias fantasiosas sobre os superpoderes de Bruce Lee, brilhante ator de cinema morto nos anos 70 e ex-praticante de Wing Chun. Curiosamente, Lee era um dos maiores críticos do Wing Chun, embora tenha emprestado dele a teoria e a maior parte dos golpes do seu Jeet Kune Do.
Depois da popularização do Vale-tudo nos anos 90, nossa arte marcial sofrera um baque porque o discurso não estava batendo com o resultado das lutas, pois quem se arriscava geralmente perdia rápida e ridiculamente. Nos fóruns de discussão, a desculpa preferida dos praticantes era fazer referência às regras das lutas e a supostos golpes mortais tais como dedo no olho (Biu Sao) ou chute no saco (Tiu Gerk), além do clássico chute no joelho (Deng Gerk). Outra frase que me irritava bastante era "não é luta que vence, mas quem está melhor preparado". Muitas vezes a luta simplesmente não estava preparada, e no caso do Wing Chun talvez nunca estivesse, por causa de suas características peculiares. Por outro lado, isto não queria dizer que a luta era ruim. Quem a conhece de verdade sabe disso, e bons lutadores ao conhecer de verdade a técnica entendem por instinto como ela pode ser usada e a respeitam dentro de certos limites. Só é preciso analisa-la objetivamente, despida do discurso proselitista.
Toda arte marcial é uma resposta estilizada e sistemática sobre determinados problemas numa luta, nunca é tudo o que se fazer numa luta. Por isso existem tantas diferentes artes marciais. Mas os mestres de Wing Chun teimosamente em pleno terceiro milênio não dão o braço a torcer, eles vendem seu peixe dizendo que qualquer um que aprenda a filosofar em suas escolas vai derrotar, sem qualquer experiência real de combate, qualquer lutador, de qualquer técnica ou em qualquer situação de combate sem maiores problemas, porque o Wing Chun luta uma luta "real", ou seja, sem regras. Será que ver um Fédor da vida amassando a cachola de um suicida que tentou a sorte não é real o bastante para esse povo? Naturalmente, por nossa arrogância, nos tornamos o maior alvo de chacota dentro das artes marciais. A imensa maioria dos vídeos de demonstração na internet são tão irreais e inaplicáveis que parecem saídos de filmes de western soja de baixíssimo orçamento. O "21zeiro" (trocadilho pejorativo com a pronúncia aportuguesada da luta) do soco p****ta (soco com punho na vertical) hoje é sinônimo de praticante de arte marcial alienado.
Tome por exemplo artes marciais filosóficas e defensivas como o Aikido. Pouca gente fala mal do Aikido, e os grandes responsáveis por isso são os próprios praticantes e mestres. Eles não tentam ser o que não são. São bons no que fazem e ponto final. Bons policiais procuram aprender Aikido para poder imobilizar suspeitos sem machucá-los e sofrer sanções por isso.
Pense no boxe. Boxeadores não ostentam faixas ou títulos de mestre. Se você chegar numa academia de boxe, é pouco provável que encontre os caras se embolando no chão e tentando encaixar um "triângulo" ou uma chave de perna uns nos outros. Você dificilmente vai encontrar um boxeador tentando provar que o boxe é a luta número um, mas nenhum lutador inteligente vai subir num ringue de MMA sem saber pelo menos noções desta luta. Se você tiver 120kg e tentar dois rounds contra um boxeador amador de 60kg minimamente experiente, você provavelmente será nocauteado.
Sendo assim, embora em razão do pouco tempo para preparar a obra, o perfil leigo do comprador e pequeno espaço para o texto, tentei explicar como funciona o Wing Chun deixando de lado o discurso e focando friamente na técnica e do modo mais simples possível. Por que o lutador de Wing Chun usa o soco vertical? Por que as formas (kata, para usar um termo japonês mais conhecido que o chinês Tao Lu, Kuen To etc.) e bases do Wing Chun são diferentes das de outros estilos de luta que também vieram do templo Shaolin? Eram perguntas que eu mesmo me fiz quando comecei a praticar 20 anos atrás.
Comecei a dizendo o que o Wing Chun não é: luta de ringue e mera "defesa pessoal" este termo de uso geralmente confuso adotado sem muito critério por escolas de luta ruins. Coloquei lá as influencias que a luta sofrera do budismo Chan (zen) no modo diário de treinar e do taoísmo clássico, de onde é visivelmente tirada toda a estratégia para o combate. Expliquei como que o praticante deve usar biomecanicamente seu corpo para tirar máxima força dos movimentos (a maior parte das escolas de Wing Chun diz que a luta não usa força, coisa curiosa, porque na natureza tudo é, de certa forma, relação de emprego de força), a razão da simplicidade dos contra-ataques e como a defesa, um pouco mais complexa, foi montada de forma a sempre se adaptar ao inesperado. Muita coisa para se colocar em tão pouco espaço e em linguagem de gente. Sim, porque quem compra este livro não é o vinteumzeiro, mas o cara que nunca ouvira falar daquilo. Livros como este atraem novos praticantes em potencial.
Escrever este livro tão simples, e montado a tantas mãos generosas foi a maior chance de honrar a arte marcial à qual dediquei os melhores anos de minha vida. Tenho convicção absoluta que naquela simplicidade de texto consegui fazer algo inovador no Wing Chun do Brasil: abordá-lo de forma honesta sob o prisma de quem já praticou pra valer outras lutas tão boas quanto boxe, Muay Thai, MMA, Judo, Karate e outras, e situá-la em relação às outras lutas de acordo com a sua finalidade. Coloquei alunos de físico comum para mostrar que a luta é feita justamente para pessoas sem grande porte físico ou habilidades especiais, porque segue uma técnica. Sendo assim, quem pega este livrinho nas mãos termina de o ler já tendo uma idéia se deve tentar praticá-la ou não. Dentre tantas artes marciais disponíveis, o leitor pode entender o suficiente para dizer: é isso que eu quero para mim nas artes marciais! Ou não.
No ano seguinte à publicação da obra eu viajei à China e pude treinar com meu Sigung, mestre Duncan Leung tempo o suficiente para poder finalmente ter uma compreensão clara de como pegar toda a teoria e como treiná-la na prática para aplicá-la com o máximo de eficácia no combate dois-a-dois. Mas isso é a chamada para meu segundo livro, e que será publicado ano que vem.
Abraço a todos.