sexta-feira, 19 de julho de 2013

DEFESA PESSOAL, A FALÁCIA DA PILANTRAGEM MARCIAL - Terceira Parte - I.

"Estou encrencado", penso depois de tomar mais um soco cabeça, naquela confusão de seguranças a me empurrar, socos e chutes vem chegando já meio que sem intervalo entre eles, de todos os lados, tudo começa a girar, mas estes golpes ainda são relativamente fáceis de defender com pequenas esquivas, que faço quase que automaticamente. Meu orgulho está bem ferido, mas eu não tenho um ponto de fuga, de forma que brigar contra um mar de gente está  fora de cogitação neste momento. O problema são as porradas que vem por trás, na covardia, chutes e golpes de bastão retrátil. De fato, eu tenho de decidir rápido se vou brigar ou continuar a me fingir de imbecil até chegar a um lugar em que haja um ponto de fuga. Brigar talvez não ajude, afinal eu estou meio bêbado e, agora, meio grogue com as porradas. O pior de tudo é não ter um ponto de fuga, pois até para brigar contra esse monte de gente e ser surrado com algum resto de brio, é preciso triangular entre os adversários e, depois de um segundos e bater o quanto puder, terei de correr e fugir, e se der sorte isolar alguns deles e bater à vontade de forma a descontar as porradas sofridas. Seja como for, sinto que isso não vai rolar, e sair dessa sem ir direto para o hospital - ou para o cemitério, já seria de bom tamanho.

SiFu Marcos executa Jong Sao a guarda simbólica para conflitos irrestritos (de rua) do Wing Chun Kuen: ações coordenadas por uma sistemática que foca a estratégia na prevenção e considera até mesmo a fuga e o logro como táticas importantes.

O cara baixinho que está comandando o show está bem confiante. A princípio, quanto ele se colocou, ainda dentro do galpão, em minha frente, com um sorriso arrogante no rosto, a única coisa que o salvou de um golpe imediato foi eu não ter divisado bem se o objeto que ele colocou apontando para meu queixo era ou não pontiagudo, o que, ao contrário do que dizem os "especialistas em defesa pessoal" realmente impede o sucesso de um contra-ataque na esmagadora maioria das vezes. Não existe defesa contra objeto perfuro-cortante que garanta eficácia, portanto é melhor não dar chance ao azar. O fato de ele ser aparentemente o chefe da segurança em nada me intimidou, mas fato dele estar confiante demais fez com que eu o superestimasse um pouco talvez. Sei bem que se você bate forte no alfa, todo o resto do grupo enfraquece. Mas agora ele grita para eu abaixar o rosto e não olhar para ele, ameaçando golpear, uma tática militar que funciona bem com armas de fogo. Fico imaginando se ele era policial. À medida que chegamos perto da porta, eu ganho o espaço que eu não tinha, e um provável ponto de fuga. Quando olho para o fundo da turba, mais um grupo de seguranças chega, e penso "putz, tá ficando pior"...

... Foi aí de repente senti os caras recuarem. Eu tinha de sair, e a porta foi aberta. Ganhei espaço para brigar. Comecei a ganhar um pouco mais de confiança ao perceber, tardiamente, que os caras estavam com medo. É, medo. "Vocês realmente precisam de mais de quinze pessoas para botarem um só homem para fora do show, vocês são realmente corajosos!", comecei a dizer olhando direto para o cara. Foi aí que, sem qualquer interferência da consciência, fiz o único movimento de arte marcial até então; levantei meu braço esquerdo por cima de minha cabeça, enquanto girei minha base toda a 45 graus em Chor Mah (para a direção de um brilho súbito vindo da minha lateral esquerda. Um objeto duríssimo explodiu contra o meu antebraço armado em Jam Sao (沉手) tão rápido quanto violentamente, provavelmente uma barra de ferro, e caso eu não fizesse a defesa teria sido atingido no rosto, caído no chão e aí sim teria sido almoçado pelos caras, pois para caras frouxos chutar um adversário rendido é muito mais seguro.

Lucas Forrest aplica Chai Gerk. Lucas é um dos muitos alunos de SiFu Marcos que aplicou a técnica do sistema Wing Chun tradicional para defesa pessoal, nocauteando seus inimigos: técnica tem seus limites na rua, mas está longe de ser ineficaz.


"Não vou sair", eu disse, enquanto muitos deles já retornavam, orientando-me com ameaças não olhar para eles, que fizeram um gesto para voltar meio a contra gosto, uma vez que não compensava nem para eles nem para mim, arriscar. Mas, sentindo o medo deles, havia ganhado confiança, e estava a fim de descontar. Foi então que um cara que mais parecia o vocalista do Judas Priest disse: "Ah, não vai sair não, é? 'Pera' aí..." Ele pegou um objeto envolto num saco de pano vermelho, enfiou a mão por dentro e segurou como se empunhasse um revólver, colocando-o bem defronte meu nariz.

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Ninguém entendeu depois o orgulho que tive dos meus machucados, patética que tenha sido a situação, mas o fato é que as coisas estão diferentes agora. Tenho duas filhas pequenas precisam de mim, uma delas era recém-nascida na época, e eu nem mesmo entendi o porquê de ter sido alvo daquela violência, ao menos daquela vez, de forma que não posso mais arriscar sequer estar envolvido neste tipo de situação. Passei dois meses sem conseguir defender chutes com o braço esquerdo com suspeita de fissura na região, mas confirmei que tanto a técnica que usei - repetida à exaustão na semana anterior com meu aluno Orlando que treinou boxe e tem braços muito rápidos - quanto outras podem funcionar se treinadas do modo correto.

Pelo menos cinco alunos e alguns SiDai* haviam tido sucesso em brigas de rua simples - Se é que se pode dizer que brigas podem ser simples apenas - com o treino que eu lhes havia ministrado, baseado na repetição contínua de técnicas, dezenas, centenas de vezes, tentando conecta-las numa evolução de conceitos parecidos; Por exemplo, se eu fizesse algum Chi Sao (黐手)** (exercício de reflexo com os braços colados) que estimulasse a cobertura instintiva com um tipo de defesa, essa mesma defesa seria a defesa repetida na técnica de luta. Entretanto combates irrestritos ou de rua são tão sujeitos a variantes diversas - e adversas - que tudo o que pode fazer é estar antenado com o que pode acontecer de ordinário num evento destes, e torcer para que aquele aspecto do treinamento cole com a situação ou, melhor ainda, possa ser adaptado a ela. De fato, todas as cartas deveriam jogadas mais na antecipação, interceptação e frustração do conflito do que no enfrentamento puro e simples. Nenhuma pessoa de bem será atacada em igualdade de condições, de forma que estar no meio de um conflito, ainda que se lhe vença, já denota um erro tático por parte do defensor, que se colocou na situação de desvantagem.


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Estou na Academia Aliança, num breve intervalo do treino, tentando mostrar ao Hugo "Wolverine" Viana, atleta do UFC o nosso golpe "de encontro" - no jargão boxe, na versão que usamos no Applied Wing Chun. Essa técnica fora usada numa briga por meu aluno Lucas Forest contra um agressor mais alto e descrita pelo porteiro do condomínio dele, um ex "67" promissor da academia do Luiz Dórea, hoje treinador principal do Hugo e treinador de lendas como Acelino Popó Freitas, Minotauro Nogueira, Anderson Silva, Júnior Cigano e outros tantos campeões com o boxe . A diferença do golpe do Wing Chun para o do boxe é rápida troca de pernas que potencializa o golpe, uma que por questões estilísticas ruins de expressar agora, muitos de nós lutamos com uma guarda que deixa braços e pernas mais fortes à frente. Às vezes a necessidade do ringue coincide com a da "rua" e isso me faz pensar nas diferenças e similaridades entre os dois ambientes de combate, mas um evento recente, que ocorreu durante as semanas da feitura deste artigo me deu ferramentas mais ilustrativas para expor meu pensamento.

Hugo "Wolverine" Viana, treinado por Sifu Marcos em Wing Chun aplica cotovelada Pie Jian em combate no UFC: conexões da arte marcial com o ringue seus tem limites. E vice-versa.

Como havia dito na primeira desse ensaio, a falta de um sistema que padronize um conjunto de ações e táticas para combater em um ambiente aberto dificulta mais as coisas. Houve recentemente uma grande repercussão na mídia de um vídeo filmado por câmeras de segurança (vide link abaixo) onde dois rapazes, lutadores profissionais de MMA, são arrasados como simples leigos numa briga de rua por um grupo de rapazes. Muitos profissionais de ensino de lutas discutiram o evento sob o ponto de vista moral; a postura inadmissível dos rapazes etc. Como profissional cujo foco inclui também a "defesa pessoal", este termo canhestro, deixei o julgamento pessoal para o segundo plano e, depois de analisar o conflito do ponto de vista tático e técnico, fiquei imaginando que os vendedores de cursos de defesa pessoal completamente ineficazes estão com um prato cheio nas mãos; se um lutador de MMA se dá mal numa briga de rua, não sabe lutar a luta "mortal" das ruas, tenho eu - o leigo impressionável - de procurar algo mais perigoso, uma arte marcial ou método de defesa e não um esporte de combate que não funciona numa luta sem regras.

Este, entretanto, é um pensamento perigoso se aceito sem ressalvas. Se pessoas que tem um físico preparado e estão frequentemente expostos ao combate profissional falharam, porque um praticante de defesa pessoal com um físico mediano e outras limitações que provavelmente nunca lutará pra valer no ambiente a que se propõe seu curso (e muitas vezes sequer na academia) faria melhor? Muito se falou do ocorrido, mas nada com objetividade que a situação merece. O vídeo também tem servido àqueles que dizem que arte marcial alguma serve para a defesa pessoal, e que a prática serviria apenas à manutenção da saúde e fortalecimento do espírito, valendo mais rezar para um dia não se vir em uma situação para a qual não há solução aparente.


Lutadores profissionais de MMA apanham de grupo: praticantes de cursos de defesa pessoal teriam tido melhor sorte? 

O vídeo todavia nos dá algumas lições. A primeira é que quando se luta no ringue você tem um alvo, e a sua postura, sua distância e seu ritmo são dados por este adversário à frente. Se a sua postura de combate, movimentação e ritmo continuam as mesmas no combate irrestrito, o potencial que os agressores derredor tem para te acertar aumenta vertiginosamente. O mais perigoso dos agressores do vídeo não está entre os rapazes que estão brigando diretamente, mas o rapaz do "deixa disso", um malandro que fica circulando e procurando uma oportunidade de agir. Se, no começo do vídeo, este agressor, de jaqueta vermelha, tivesse uma faca, o rapaz que provocou toda a confusão estaria morto. Por isso, num conflito inevitável, qualquer um que invada seu espaço pessoal deve ser visto como agressor, direto ou indireto, e é alguém igualmente perigoso como os demais. Isso é só um exemplo óbvio da "cancha" que não se ensina nos tatames. Os rapazes do MMA são ironicamente colocados fora de combate com golpes de barrote de madeira simples, lentos e de teoricamente mais fácil defesa que os chutes e socos desferidos de todos os lados.

Brigar com base estável e com domínio de "ringue", algo imperativo no esporte de competição "mano a mano", perde totalmente a eficácia quando é considerado um número elevado de agressores cujos ataques vem de diferentes ângulos e muitas vezes ao mesmo tempo. Nestas situações, qualquer ação ofensiva deve ter a fuga como princípio, meio e fim. A falta de uma discussão técnica em torno do conflito, somada a uma profusão de frases feitas jogadas ao vento para tirar proveito do momento, seja contra ou a favor apenas confirmam o amadorismo dos profissionais que assim procederam. Pelo menos se considerarmos a preocupação com a eficácia dos sistemas de combate, já tão limitados nos dias de hoje devido às armas de fogo e outras variáveis, porque a pilantragem do discurso, do marketing e da proliferação de falsos mestres e métodos de eficácia comprovavelmente duvidosa, mas que prometem justamente o contrário e o viés novo, embora menos perigoso de que a arte marcial não poderia nada fazer para proteger alguém numa situação de perigo, mas que seria uma simples patuscada filosófico-calistênica, estão aí arrebanhando incautos aos milhares.

Continua com a última parte.

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Nota: *Si Dai (mestre-irmão-mais-novo): diz-se do condiscípulo mais jovem do praticante.
**Chi Sao (Braços Grudados): Exercício de pressão mútua e circular dos braços de um par de praticantes num jogo combativo que visa treinar a mente para conduzir a ações simples e automáticas de defesa e ataque de acordo com os princípios técnicos de Wing Chun, sem entretanto que se pense conscientemente nos mesmos.


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Destrinchando o Muk Yam Jong, o boneco de madeira do Wing Chun, em uma análise de caso. Parte II

Pois é, assim como o personagem do game Tekken, Mukujin ( 木人) lit. Pessoa de Madeira, Uma corruptela de seu alter ego, Muk Yan Jong ( 木人...