terça-feira, 6 de maio de 2014

DEFESA PESSOAL, A FALÁCIA DA PILANTRAGEM MARCIAL - Parte final: Os Vendedores de Ilusões - Como você paga para colocar a vida em risco.


“Tomorrow is the most important thing in life. Comes into us at midnight very clean. It's perfect when it arrives and puts itself in our hands. It hopes we've learned something from yesterday.” 
― John Wayne



LEMBRANDO A ORIGEM DESTES ENSAIOS


Este artigo deveria ser escrito casado com a passagem de um ano do assassinato de meu aluno e amigo, o Delegado de Polícia Civil Eduardo Rafael, em novembro último, depois de ser baleado ao reagir a assalto. Preparei-me para isso. Mas não deu. Passei aquela semana nos preparativos para a lembrança de sua passagem por parte da escola e seus amigos e irmãos de arte, sendo emocionalmente complicado voltar a este assunto de forma um pouco mais fria. Quando perdemos alguém de forma abrupta e violenta, um forte sentimento de revolta e inconformidade nos toma e demora muito a sair. Lembro que nos primeiros meses realmente me considerei bastante culpado pela morte dele, assim como muitos de seus amigos, por diferentes motivos. Mas para mim foi diferente, uma vez que fui o último a falar com ele, e era seu mestre em artes marciais naquele momento, embora ele fosse previamente treinado em close range combat e, no Wing Chun, ainda um iniciante. O ingrediente macabro foi que naquela noite discutimos longamente sobre prós e contra de reações a assaltos.

À medida que o tempo foi passando e que ia escrevendo esta série de esboços, ensaios, eu esperava que a desconfiança que sempre tive da tão aclamada infalibilidade de determinados métodos de defesa pessoal, marcada por algumas ideias soltas, tomasse corpo e desse vazão a uma crítica bem definida e com argumentos firmes. Não, não quero reinventar a roda nem tenho muita esperança de dizer nada que  já não tenha sido dito por gente corajosa e de bom senso, mas de alguma forma usar a responsabilidade social que tenho como mestre e profissional de artes marciais, ao mesmo tempo que resolvo meus demônios internos em relação a este assunto, para que eu tire alguma lição disso e use a habilidade que tenho para expor minhas conclusões dizendo algo útil para as pessoas, fechando este ciclo.


Homenagem preparada para Eduardo por seus irmãos kung fu por um ano de sua passagem. 




PERGUNTA QUE NÃO CALA: ATÉ QUE PONTO ACEITAR O FATOR "FATALIDADE" NAS MORTES VIOLENTAS?

Uma coisa que ficou martelando na minha cabeça durante muito tempo foram dois dados daquela situação fatídica. Fatídica? É isto que precisamente teimo em não aceitar. Eduardo desarmou e atirou num de seus assassinos e no processo foi alvejado pelos demais; Tivéssemos uma situação ideal, com menos gente, provavelmente teria sobrevivido e sido aclamado herói. Mas quantos sobrevivem a este tipo de situação? Ora, no estado de São Paulo, menos de 1% do total de assaltos a mão armada terminam em morte. Na maioria esmagadora dos casos, as poucas mortes se dão justamente pela REAÇÃO voluntária ou involuntária das vítimas, ou da tentativa de fuga das mesmas, sendo ainda menor a parcela de casos em que o o assaltante deliberadamente mata a vítima sem motivo aparente. Entretanto são justamente estes casos mais raros que vão parar na TV, tendo o fator crueldade como critério. Crime violento dá mais audiência, por ser indignante, e essa exposição contínua acaba por incentivar no publico atitudes extremas diante da violência iminente e inescapável. Então outra pergunta, talvez ainda mais pertinente é: para que treinar alguém para tentar algo que provavelmente não vai acabar bem quando se não se é de fato um combatente profissional, uma vez que na esmagadora das vezes o agressor está interessado apenas na obtenção dos bens materiais? Em Cuiabá, as estatísticas mostram que a chances de ser morto ou ferido com gravidade ao tentar a reação num assalto chegam 90%. Sabedor de estatísticas sempre similares a estas, segundo testemunha do crime, Eduardo não pretendia reagir, mesmo estando preparado para isto; entretanto, identificado como policial, não teve escolha, pois neste momento ele se encaixou automaticamente no perfil daquela parcela mais do que mínima de vítimas de quem o marginal deliberadamente tira a vida.

Então, não tinha jeito? É se conformar e aceitar que este tipo de coisa, de repente...acontece com policiais? Bem, isso conduz ao segundo dado, e o que mais me deixa triste; por estes desencontros da vida eu acabei não indo na casa do delegado nas diversas oportunidades que tive. A cerveja e petiscos com mulheres e crianças foram adiados para nunca mais. Ele morava num prédio de esquina num bairro de ruas largas e com diversas saídas rápidas. Tinha de descer de seu Gol 1.6 branco zero km, abrir o portão da garagem, entrar, estacionar, descer do carro e trancar portão. Eu certamente o teria alertado para o que ele já sabia. Uma vítima comum desce, entrega o carro e acabou. Um delegado de polícia, não. Não importa o quão bem você seja treinado, a situação aberta nunca será dada na exatidão do treinamento. Entretanto, para homens de segurança, para estes profissionais que enfrentam todo o carma negativo dos problemas que a sociedade varre para debaixo do tapete, como parte de sua rotina, é preciso estar muito bem treinado para ter uma chance. Ruins que alguns métodos sejam, e abordei um pouco disso neste e em outros artigos desta série, você precisa ter algo, uma referência, um lastro técnico-motor, umas poucas técnicas mais funcionais dominadas para aplicação imediata e outras mais amplas, mesmo que funcionem num nível simbólico, para te dar uma vaga ideia do que fazer.

Falando friamente contudo, o que me diz que isso não foi uma fatalidade foi uma série de coincidências de forças que corroboraram e  culminaram com o sinistro, uma vez combinadas num único e mortal evento: o fato de ser policial e andar armado, ter deixado as armas em local acessível, o terreno, o horário, o objeto de desejo dos bandidos, e, mais do que tudo, a situação de fragilidade em que se colocava voluntariamente todos os dias ao se expor para guardar o seu veículo. Uma vez que fosse possível morrer e voltar à vida, quantas vezes na mesma situação Eduardo teria reagido e tomado a arma do bandido? Em quantas teria sido baleado? E se ao invés de quatro, fossem menos assaltantes? Quanto ele teria de treinar mais para eliminar todos os erros e fazer como num filme, onde tudo dá certo? E por que este raciocínio soa tão estúpido para mim? Se alguém se vê forçado a lutar com estranhos por sua vida, contra a sua vontade, em situação de franca desvantagem, isto na maior parte vezes denota um erro estratégico que irá transformá-lo em mais um número em algum relatório de política pública de segurança.



OS RISCOS DA FALTA DE ESTRATÉGIA E A ORIGEM PLURAL DAS ARTES MARCIAIS

A suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem lutar.” 
Sun Tzu 




Ora, nada me  demove a ideia que tenho de que  um homem na condição dele sabia do risco que assumia se expondo deste jeito todos os dias. E que não precisava ter sido deste jeito. Convenhamos que ajuda muito não dar espaço ao azar.  Tivesse ele conseguido sobreviver e teríamos cinicamente considerado a reação perfeita, a melhor coisa a ter sido feita. Entrevistas na TV dizendo para não tentar isso em casa, que isto só para profissionais, etc. Mas será que treinar diligentemente para se atracar com bandidos na luta pela vida é o melhor que as artes marciais tem a oferecer para seus praticantes? Além: sejamos francos, será isto o mais inteligente em termos de defesa pessoal? Anos de treino para serem postos a prova numa fração de segundos a todo custo? E para provar o quê? Quantas vezes a ação será disparada mais pelo orgulho e pela ojeriza à impotência e a humilhação?

As artes marciais de origem oriental não são um saber flutuante, desapegado de um contexto histórico, mas são também resultado direto da influência de toda uma cultura associada às principais linhas de pensamento/religiões orientais, como o Hinduísmo, o Budismo Chan/Zen, o Taoismo e o Confucionismo. Diferentemente de outras religiões, e escapando à definição ocidental do termo, estas escolas de pensamento não se concentram apenas em resolver uma dada situação através da fé ou do esforço agudo, local e elaborado, mas entender as condicionantes dos processos dinâmicos que levam as pessoas ao sucesso ou fracasso na vida pessoal, social e espiritual em suas bases mais profundas. Elas em geral não se detém nos resultados, ou apenas ainda colocar o sucesso ou fracasso em mãos alheias de um deus, mas dar armas para que cada um faça bem suas próprias escolhas, de forma natural, apenas seguindo uma suposta dinâmica universal, que se expressa no mundo cotidiano todo o tempo, sem nada forçar. Não procuram apontar onde está o "pecado", ou quem o executa, mas evitar o desejo que leva a cometê-lo, ao invés de tentar frear os instintos num ponto onde será impossível fazê-lo.

Este é um dado importante para se entender o modo de pensar associado às artes marciais orientais. Qualquer um com um mínimo de inteligência e planejamento pode suplantar uma situação maior que suas forças, desde que se aja na base, antes que aquilo esteja grande demais. Essa é mesma ideia taoista da não-ação, que não tem nada a ver com inatividade ou passividade. Não sujar a rua ao invés de investir tempo e dinheiro demasiados em vassouras e varredores, por exemplo. Desta e de outras ideias simples evoluíram não apenas o pensamento oriental, mas junto delas a medicina e artes marciais orientais, e durante muito tempo estes conhecimentos  andaram e se desenvolveram juntos. O professor de artes marciais na Índia e China antigos era não raro  o conselheiro, o protetor e o médico da localidade onde ensinava. O convívio com mestre e os condiscípulos nos estudos extra-classe e nos momentos de descontração eram uma extensão, um acréscimo de treinamento informal para a aplicação dos conceitos marciais em diversos aspectos para além da mera troca de golpes. Isto trazia a razão e coerência técnica para fora do local de treino, e vice-versa.


Estátua de Sun Tzu no Japão. O autor da "Arte da Guerra" ressaltava a importância da estratégia na solução de conflitos



O estudo da luta em terrenos, situações políticas e sociais diversas ao longo dos séculos deu origem a variadas técnicas, fantásticos sistemas de luta que muitas vezes dão a chance a alguém de menor porte vencer alguém muito maior ou mais forte, em maior número ou com algum tipo de vantagem em certas agressões simples, ou combates onde ambos os contendedores estão armados.  Em tese, seguindo uma estratégia, e em determinadas condições, qualquer um teria condições de se defender minimamente sua integridade física. Contudo, uma das lições aprendidas no dia-a-dia físico da luta é que não se pode vencer todas as vezes um conflito, mesmo o dos mais simples, mano a mano. Que embora tenhamos poder para matar, devemos estar prontos para morrer, e que ao mesmo tempo a vida é preciosa demais para ser tomada ou dada em vão. Lutar, machucar o outro sem feri-lo gravemente, e mesmo apanhar é um processo através do qual crescemos e aprendemos a dar valor à vida ao mesmo tempo em que desenvolvemos - também - um meio de protegê-la. O jogo do combate, que implica colocar vida em risco em algum nível, e a própria "vida" paralela nas artes marciais eram também um modo de se abordar simbólica e estrategicamente o jogo da vida real: trabalho, amizade, filhos, desafios menos dramáticos e imediatos à primeira vista, mas não menos importantes.

Vivemos agora num mundo muito diferente, onde se por um lado temos a lei colocar ordem ao caos e à barbárie ancestral, esta mesma lei nos desarmou e nos torna dependentes do estado. Se tivermos de enfrentar alguém para defender nossa vida o faremos numa desvantagem nunca vista antes, em especial depois do advento da arma de fogo. Uma bala sai de um revolver, de um mero calibre 38 a mais de 1000 km/h. Um recordista de 100 m rasos atinge uma velocidade média de 45 km/h. Isto não lhe dá muitas opções quando você chega atrasado. Embora não haja leis que nos impeçam de portar armas brancas em nosso país, se o fizermos podemos ou ser detidos ou sermos vítimas do despreparo policial. Embora possamos ter uma arma em casa, dificilmente um cidadão comum consegue o porte de arma. E mesmo que consiga, o fator surpresa num ataque programado por bandidos numa situação corriqueira evidencia o quanto pode ser um mal negócio reagir, uma vez que bandidos já vem com a  segurança da impunidade, num país de proporções continentais, mas com cidadãos vulneráveis e convenientemente desarmados pelas autoridades. Neste novo mundo, pragmático, superficial e imediatista, , as artes marciais se distanciaram das escolas de pensamento e criou-se a impressão - falsa - que apenas a técnica de luta pode ser o componente mais importante para defesa pessoal, quando o que ela pode fazer de fato é te dar recursos para umas poucas situações práticas muito específicas, em sua maior parte a necessária noção contra agressões simples desarmadas e, para os deslumbrados dos sistemas de defesa pessoal que tudo prometem, uma perigosa falsa sensação de segurança.


OS VENDEDORES DE ILUSÕES: COMO VOCÊ PAGA - CARO - POR E PARA POTENCIALIZAR O RISCO.



Séculos atrás, Myamoto Musashi já criticava escolas de artes marciais que supostamente vendiam o segredo do combate em seu "Livro do Cinco Anéis".


Quando nos decidimos por uma arte marcial ou esporte de combate uma série de atributos que desejamos ver assoma à mente; e especialmente quando escolhemos alguma prática para nossos filhos, mais do que para nós mesmos, uma busca de vantagens tem tem início: Preparo físico, qualidade de vida, recreação, contato social, um maior poder de concentração e foco, o "gastar" da agressividade num ambiente seguro, a própria serenidade ou agressividade positiva contidos no local treino, as roupas extravagantes e os ritos bacanas de passagem de nível ou meditação, a disciplina, a possibilidade de evoluir numa área do conhecimento, tudo isto está incluso. Nada disso tem maiores consequências e, na pior das hipóteses, poderá ser uma boa experiência que, abraçando ou deixando para trás, terá sido benéfico de alguma forma; entretanto, quando se fala em Defesa Pessoal a coisa muda de figura. Estamos falando aí de consequências que ao passarem pela porta da academia afora irão desde um simples olho-roxo até a invalidez ou morte. É algo muito sério, que não pode ser comprado, tampouco vendido. Não há qualquer método que garanta sucesso neste tipo de situação, mas este dado, óbvio, a exemplo do governo que te desarmou, será convenientemente escondido pela escola que está a te vender este produto intangível, a defesa pessoal, quase sempre de forma irresponsável.



"Eu estarei com vocês, caras, em um minuto. O mano de vocês está prestes a bater" A charge ilustra com bom humor que mesmo as artes de luta (no caso, um exemplo de luta de solo que numa situação de campeonato estaria praticamente vencida) consagradas podem ter sua aplicação complicada pelo contexto do conflito irrestrito ou "de rua". 





Não há qualquer problema em o cidadão comum estudar um sistema de luta para aprender a se defender minimamente, evitar ser agredido gratuitamente no caminho para escola, no trabalho, no trânsito, no lazer ou nas agressões domésticas e sexuais. Existe antes de tudo o direito de não aceitar ser vítima passiva. Mas há cursos e escolas que envolvem técnicas marciais que se auto-intitulam, antes de qualquer outra coisa, um método que tem como único e objetivo exclusivo cuidar de sua defesa pessoal. Mas isto é uma mentira parcial. Pregam, na verdade, aberta ou tacitamente, a reação imediata a agressões sob a capa desde a defesa da honra, da dignidade, da harmonia exotérica, dum pseudo-militarismo de shopping center. Venha praticar a defesa marcial dos monges budistas. Do exército mais bem treinado do mundo, e por aí vai. Acontece que o perfil deste tipo de público não é o do monge-guerreiro. Não é do soldado. É alguém que em geral ama o simbolismo do negócio, mas passaria bem longe de um conflito, antes de começar a praticar. O soldado, não custa lembrar, é um forçado combatente profissional que está antes de mais nada arriscando a vida, no nível infinitamente maior que o cidadão comum, muitas vezes contra a própria vontade, e sua morte já é dada como certa de saída em qualquer cálculo preliminar estratégico, e muitas vezes oferecida pelo comando como um preço a se pagar num ponto para se alcance a vitória em outro. É disso que trata este último texto. Das escolas que não apenas escondem de você os fatos da maioria esmagadora de quaisquer estatísticas sérias, mas literalmente lhe tiram dinheiro para fazê-lo crer que treinar para reagir vai lhe dar autoconfiança, segurança e paz com seus conflitos internos que às vezes o levaram até ali, especialmente para aqueles que já passaram por alguma situação de violência, ou tem medo, quando na verdade é o contrário, o individuo comum que luta por auto-afirmação, que prefere arriscar a vida para salvar bens materiais que jamais serão tão preciosos  do que estar vivo para usufruir estas e outras coisas, é que está dando uma prova cabal da sua desinteligência e despreparo tático, emocional e espiritual.


As artes marciais são o resultado de uma série de valores culturais ancestrais. A técnica expressaria também fisicamente essa visão de mundo. Que cultura marcial queremos passar às nossas crianças?




TÁTICAS COMERCIAIS PARA VOS EMPURRAR UM ÚNICO PRODUTO: A REAÇÃO.

Em artigos como "ME BATE QUE EU TE MOSTRO" abordei a forma muitas vezes fantasiosa e exagerada das exibições que muitos mestres fazem para demonstrar suas habilidades e impressionar leigos. Ao contrário dos esportes de combate, onde as aplicações técnicas são filmadas e verificáveis, talvez mais facilitadas, dentro de certos limites, pelas regras e repertório técnico, a aplicação de uma técnica treinada num ambiente controlado da academia em um ambiente irrestrito e sem regras é extremamente dificultada pelas variantes de ataque, meios, número de oponentes, fator emocional e, sobretudo, pelo o fator surpresa, que seja reações intempestivas. O Wing Chun, arte marcial que ensino profissionalmente, por exemplo, destacou-se no passado pelo sucesso nas brigas de rua chinesas. É bom (não perfeito, não infalível) e especializou-se para este tipo de ambiente de luta justamente por reconhecer a impossibilidade de se treinar para todos os tipos de situações e ter uma resposta para tudo, por isso trabalha com um número pequeno de conceitos técnicos simples que podem ser recombinados no calor da ação e que cria uma "cultura de planejamento" a longo prazo que propicia no estudante a atitude de visar não meramente defender golpes mas agir nas condicionantes do conflito, taticamente, de preferência antes que o mesmo que o ataque aconteça, projetando um padrão meramente técnico para uma "técnica de comportamento". Um exercício de combate simbólico que internaliza essa ideia de antecipação reflexa no Wing Chun é o Chi Sao.



Meu SiTaiGung (mestre-bisavô na cultura do kung fu) Yip Man pratica Chi Sao com seu estudante Bruce Lee nos anos 50. Exercício para educar a mente antecipar situações perigosas em luta, antes mesmos que elas se configurem em ato físico concreto. Simplicidade como princípio. 





Entretanto, é comum ver tanto no meu estilo como em outros ver a arte ser vendida tendo como único e exclusivo objetivo a famigerada "defesa pessoal" entendida como aí apenas técnica de luta, empobrecendo e limitando suas possibilidades. O profissional de artes marciais que te vende isso está mentindo e te enganando, ingenua ou criminosamente. Ele não está te vendendo a "defesa", ele está te vendendo um produto chamado "reação" que quase na totalidade dos casos de agressões mais violentas irá não te defender, mas POTENCIALIZAR o risco. O cara coloca uma faca na sua frente, você reage. Revólver, cadeirada, gangue etc., pode vir todo mundo, você reagirá e resolverá em segundos. O que te levou a estar naquela posição vulnerável curiosamente não interessa. Preparar o indivíduo de forma global não interessa. Como você irá se gabar de uma luta que foi evitada quando você percebeu que entraria numa fria? O que dá cartaz, o que chama a atenção das emissoras de TV, é o ato do super-herói que resolve tudo sozinho, batendo de frente, por isso o querem para estar sempre um passo atrás, para ser a vítima, para entrar voluntariamente naqueles 90% estatísticos onde a merda (perdão) acontece. O argumento  mais ou menos este: "Vamos tocar fogo neste prédio: não importa o quanto o fogo irá se espalhar, a água que tenho dentro deste balde é superior a todas as outras". 




Mestre de defesa pessoal absoluta ensina como reagir (não se comportar, mas como partir pra cima, mesmo) em assalto a ônibus com o indefectível dedo no olho: Civis amadores e crédulos estimulados a somar-se desnecessária e voluntariamente às estatísticas policiais.




Observe a foto acima. Procurei não identificar o mestre, uma vez que a crítica não é determinado método, mas a postura ética. Numa entrevista (hilária, diga-se de passagem) este homem encheu um ônibus com estudantes para ensiná-los a reagir (não é piada, é isso mesmo) em assalto a ônibus. Ele mostra na TV como você desferirá aquele golpe com que o teu instrutor disse que, se as regras permitissem, ele detonaria o campeão do UFC.  Se vai funcionar ou não na real é muitas vezes uma incógnita, uma vez que certos golpes e combinações nunca foram testados num combate no ringue ou academia pra valer, de tão perigoso que supostamente seria. Este é o perigo das artes marciais "absolutas", métodos criados exclusivamente para situações "reais": seus praticantes em geral não lutam na academia, não tentam aplicar o que sabem em campeonato, e as vezes nem mesmo na academia. Tudo o que você tem é a palavra do instrutor. Que dado você tem de aquilo irá funcionar sem prática prévia? Com o outro cara vindo com tudo pra cima? Armado? E lá vai você, um cara comum, por puro orgulho ou, inda mais perigoso, reflexo condicionado, provoca ou aceita uma briga, tenta desarmar um bandido que não tem nada a perder, mulher, filhos, família ou futuro, simplesmente porque um instrutor de artes marciais disse que na rua é "matar ou morrer, senhores", para ver se tira algum a mais no fim do mês para pagar a franquia de quem lhe vendeu este discurso pronto. Não se iluda, sua ação em campo de batalha será antes de tudo um ato de fé. Boa sorte. Certamente o "morrer" será para você, não para ele, uma vez que o bom vendedor nunca consome a droga que vende ao usuário.



ONDE PROCURAR POR DEFESA

Vou pedir ao leitor que não subestime a própria inteligência e pense que estou dizendo que não se deve aprender a se defender, ou mesmo de aprender a tirar uma arma da mão de alguém, perigosamente desnecessário que seja na maioria das vezes. Novamente, não se está dizendo aqui que não se deve treinar ou estar preparado, nem que os métodos atuais não devam ser aprimorados constantemente. Uma academia de artes marciais contudo é o último lugar numa longa lista de onde você deve procurar quando pensar com seriedade em investir seu tempo e dinheiro em segurança profissional para você e sua família. Um consultor de segurança especializado e experiente funcionará muito melhor.

Defesa Pessoal  hoje em dia, segundo a lógica da burrice vendida nas academias, é um conjunto de técnicas corporais usadas para atuar quando tudo mais deu errado, ou seja, quando na maior parte das vezes você mesmo errou estrategicamente. Um verdadeiro curso de defesa pessoal para civis desarmados com este nome deveria abordar 80% do seu tempo com prevenção, e não com atividade física reativa. As artes marciais, que originalmente eram parte de todo um modo de pensar estratégico que envolvia boa parte dos aspectos da vida do praticante tornaram-se, segundo esta ótica canhestra, um recurso para quando você será obrigado a lutar por sua vida numa situação de desvantagem tão brutal e desesperadora que não haverá outra coisa a tentar. Como vimos estatisticamente, mesmo estas possibilidades de morte, embora existam, são remotas, e quando ocorrem na maior parte das vezes são provocadas pela própria reação em si.


PAPEL DOS VÍDEOS VEICULADOS NAS REDES SOCIAIS DA INTERNET NA CULTURA DA REAÇÃO A ASSALTOS

É muito comum em redes sociais como o Facebook a divulgação de vídeos com cenas de extrema violência, ou com fins políticos ou espontaneamente, para mostrar a indignação popular em virtude da fragilidade da segurança pública no país. São especialmente revoltantes aqueles vídeos em que os assaltantes executam vítimas rendidas sem que houvesse motivo aparente. O pai de família fez tudo certo, não reagiu e acabou morto. Quando discutimos com alguém este assunto, vem lá um vídeo que mostra um caso como este, que leva a revolta e mesmo às lagrimas, ou um daqueles em que surpreendentemente a reação deu certo; alguém sacou uma arma e acabou com todos. Bandido bom é bandido morto. Concordo. Entretanto, vídeos isolados, em especial aqueles que mostram a reação de policiais armados, não dão o grande quadro da coisa. Sugiro aos leitores que vistem um site chamado Onde Fui Roubado : este site agrega vítimas de roubos, assaltos e outros crimes que marcam no mapa o local e descrevem como foram atacadas. Embora o site só compute os dados fornecidos pelas próprias vítimas, isso invalida a tese de maquiagem oficial dos dados, por isso mesmo convido o leitor a fazer um exercício mental simples; ao olhar o mapa do site (o link que disponibilizo dá uma amostra da cidade de São Paulo, preste atenção nos pontos em vermelho, pois eles indicam os assaltos a mão armada. Imagine agora - face ao grande número de ocorrências - se uma grande parcela destes atacados tivesse algum conhecimento marcial e reagisse em defesa de sua honra e bens. Quantos destes pontos em vermelho transforma-se-iam em casos de latrocínio e quantos seriam de uma reação bem sucedida?



O OUTRO LADO DA MOEDA: A ORIGEM EMPÍRICA DA EFICÁCIA TÉCNICA E O DIREITO INALIENÁVEL DE REAGIR (DESDE QUE NÃO FERRE QUEM ESTIVER EM VOLTA) 

Muita gente defende perfis de uma mesma arte marcial de acordo com uma linha ideológica-comercial. Por exemplo, é costume dizer que as escolas de uma linha X seriam de "lutadores" que vão aos campeonatos provar a sua supremacia técnica; uma outra, Y, os "heróis" que treinam para a luta "real" ou briga de rua hipotética, havendo ainda uma Z dos vulgarmente chamados "filósofos" da luta, para quem as artes marciais não serviriam para lutar, mas atingir um nível espiritual superior. Cada um dos mestres que encabeçam escolas com estes perfis marcados ridicularizam ou pelo menos lançam farpas uns aos outros. O filósofo marcial critica o esportista marcial como alguém de pensamento limitado, violento e sem nada a oferecer, que por sua vez ridiculariza os teóricos do confronto aberto, por acreditar que a luta se resume ao que faz no ringue; o praticante de defesa pessoal despreza por completo a experiência de contato físico total dos treinos de luta esportiva alegando que a "luta real" não tem regras, e que os verdadeiros golpes mortais não podem ser treinados para valer na academia. Contudo, se analisarmos as origens das artes marciais mais eficazes, veremos que elas necessitaram - em diferentes momentos de seu desenvolvimento - de pessoas com cada um dos perfis caricatos acima convergindo suas experiências ao mesmo tempo para forjar algo valioso. O sábio desenvolve a teoria, o prático a técnica, o louco faz com que ela aconteça, e por fim o grande vendedor a torna popular. Todos eles são necessários a uma escola que se pretenda completa e se mantenha assim.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que digo ao leigo desavisado que evite a reação desnecessária na maioria dos casos, em especial durante assaltos a mão armada, não se iluda, para que você pratique hoje uma arte marcial/esporte de combate de ponta, algum sujeito no passado deixou de lado o conforto e arriscou a vida ou a integridade física tentando aplicar o que sabe de fato, seja numa competição, seja na rua. Existem sujeitos que vivem suas vidas procurando a morte o tempo inteiro, às vezes para tentar fazer justiça, outras vezes por orgulho, outras por gostar de brigar e subjugar outrem. Mas este tipo de sujeito está deliberadamente procurando por emoções perigosas e está consciente dos riscos envolvidos. Muitos de meus alunos, por exemplo, gostam de estar na noite, no urderground urbano, e por isso mesmo vez por outra se metem em encrenca, por conta do seu estilo de vida. Vez por outra recebo um telefonema ou mensagem via Facebook  sobre alguma luta, e geralmente estudo estes embates para aprimorar meu método de ensino. O que ensino na minha escola entretanto passa pela defesa pessoal não como um fim em si mesmo, mas como um recurso técnico notadamente limitado para situações muito específicas. O que ensino de fato aos que se interessam em proteção pessoal é projetar o saber da arte marcial estrategicamente. O lutador de Wing Chun que usa sua arte não entra para lutar, e sim para vencer, e a vitória sem luta, embora menos dramática, é mais gloriosa, pois é a que gasta menos energia e envolve menos riscos. Se algum de meus alunos - todos adultos -  eventualmente se metem em encrenca, não é por falta de aviso dos grandes riscos envolvidos. Todos tem o direito inalienável de se meter em encrenca, ou de protegerem a própria honra, ou orgulho, desde que tenham plena consciência daquilo que se tem a perder e a ganhar com a escolha pelo combate. E para ganhar algo, sempre perdemos outra em troca. Essa é a natureza cruel das escolhas, e muitas delas devem ser feitas em frações de segundos.

Em alguns estados dos USA as pessoas tem opção do porte de arma. Elas podem levá-las à cintura, bem expostas. A eficácia deste recurso pode ser questionada isoladamente, como no caso de Eduardo, mas será que o sujeito notadamente armado será a vítima preferencial de um bandido, num mundo onde as pessoas estivessem em igualdade de condições e pudessem se armar para escolherem ou não arriscar? E se o banido já saísse de casa tendo a consciência que iria enfrentar alguém também armado? Em que estado um marginal iria preferir atuar? Num com ou sem porte de arma? Bandido gosta de facilidade, e por mais que ele tenha vantagem de saída, ninguém gostaria de atacar alguém que pode revidar à altura. Existem também ataques que não visam apenas a obtenção do lucro nem a simples submissão do oponente, como nos ataques no trânsito, e os de cunho sexual, como o estupro, dos quais muitos terminam em morte, em que a diferença de força estrutura física limitam amplamente a defesa, mesmo de uma mulher ou criança bem treinada. Essa é uma discussão válida para a sociedade, e com ela também viria a responsabilidade civil pelas consequências, uma vez que muitas vezes num tiroteio sobra para quem nada tinha a ver com história.

EPÍLOGO

Pessoas realmente conscientes sabem que por mais haja gastos com cursos, treinamento, armas, equipamento de monitoramento, cães, energia dispensada com orações e ações positivas para a busca da tranquilidade espiritual, nada garante a defesa plena dos seus, porque ela simplesmente não existe. Mas aqueles que conduzem sua vida e ações cotidianas com uma real marcialidade conectada com ações de cunho global, preventivo e inteligente são aquelas que menos dependerão de recursos externos e técnicas marciais para enfrentar a crueldade do mundo lá fora, e, principalmente, serão aquelas mais tranquilas para desfrutar de seus momentos de paz proporcionados pelo treinamento de sua força interior.

Quero dedicar este texto a todos aqueles que não se deixam levar pela imbecilidade que toma conta do pensamento do segmento de arte marcial no Brasil, que não são poucos, mas que certamente não são os mais conhecidos.

Dedico principalmente este texto, como os outros de mesmo título, a Eduardo Rafael: um sujeito inigualável; reto, justo, sorridente, amigo preocupado, policial implacável e competente. Este pai amoroso viveu dignamente e, quando foi necessário, enfrentou o inimigo e a morte como um verdadeiro herói. Sempre permanecerá jovem, com aquele sorriso que era sua marca registrada, em nossos corações.













Destrinchando o Muk Yam Jong, o boneco de madeira do Wing Chun, em uma análise de caso. Parte II

Pois é, assim como o personagem do game Tekken, Mukujin ( 木人) lit. Pessoa de Madeira, Uma corruptela de seu alter ego, Muk Yan Jong ( 木人...