A moça tenta me explicar a questão dos cheques pré-datados, preços, vantagens, condições de pagamento, mas, afora a surpresa com os valores, estou desatento. Tento desvencilhar-me dela para enxergar o que está acontecendo. No centro do tatame, o professor, de pé, cintura para frente e mãos à faixa, vaticina:
"Não podemos perder viagem, senhores. Este chute irá quebrar o joelho do inimigo, colocando-o fora de combate."...
Lembro-me do meu aluno e amigo Eduardo Rafael imediatamente. Ele foi morto há dois meses durante um assalto em frente ao prédio em que morava em Salvador. Identificado como policial, não teve outra alternativa senão reagir. A aula prossegue:
"...porque nós temos de matar. O inimigo nos quer matar e não podemos perder tempo, devemos fazer o mesmo."
Eu gosto das técnicas que vejo, elas são muito boas, tomadas isoladamente. Mas me preocupo com duas coisas; a primeira delas é o discurso excessivamente positivista do professor. À medida em que ele avança na aula, dá a impressão que ele realmente acredita que reagir é uma boa opção a ser tomada. A segunda é uma dúvida que não me sai da cabeça, qual a conexão, qual o elo que uniria as técnicas de forma a criar um padrão existente, pois são muitas técnicas e sei, por experiência própria, que na hora do estresse elas devem surgir com a espontaneidade que a repetição exaustiva - somada a um controle emocional diferenciado - proporcionam, o que confirma o conhecido jargão marcial "mais vale uma técnica bem dominada que mil delas pela metade", e quando as técnicas são montadas com um mesmo padrão motor as coisas ficam mais fáceis, pois elas organizam o caos que geralmente nos atropela nestas situações, fazendo que dependamos um pouco menos do fator emocional. Assim sendo, artes marciais consagradas tem o seu padrão. O BJJ usa o contato agarrado no solo e alavancas, o Aikido o padrão circular da movimentação somado às torções e assim por diante. Ainda assim, artes marciais surgem para a soluções de determinados problemas em luta, não compreendem tudo o que pode acontecer numa luta irrestrita. Se não fosse assim, não existiriam tantas artes marciais.
Mas este ainda não é o ponto.
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A morte de Eduardo foi particularmente dolorosa para mim. Ele não apenas havia entendido a proposta interpessoal na prática do Wing Chun, fazendo boas amizades e ajudando a escola e a mim diretamente, mas vinha se tornando um amigo muito querido. Colega de classe de meu irmão e de meu amigo, compadre e aluno Gustavo Gomèz durante o Liceu, ele era um homem atencioso, chegava aos lugares com um olhar que num primeiro momento pareceria talvez um pouco ingênuo pela curiosidade, mas logo abria um grande sorriso que era a sua marca registrada e agradava em cheio com suas piadas curtas e sempre oportunas. Ele sempre estava disposto a ajudar e não raro chegava à escola com algum equipamento para fazer alguma melhoria no nosso espaço físico, que é ainda muito humilde.
"Sair de um mata-leão é fácil", diz o professor, e neste ponto eu quase me ofereço para testar aquela afirmação pouco provável uma vez que a técnica esteja realmente encaixada. Eu me canso e vou para casa. No caminho, fotos do grão-mestre, um homem franzino, usando uma técnica praticamente igual ao nosso Tan Da (eu digo nosso porque nós fomos a primeira escola de Wing Chun a executar o Tan um pouco mais alto, no que fomos exaustivamente copiados depois) para desarmar um homem com um bastão. Uma aspecto algo militarista meio que dá a atmosfera da escola.
Na noite que Eduardo morreu, uma espécie de ensaio macabro se configurou. Um de meus alunos contou uma história hilária em que um seu amigo, policial federal, reagiu a um assalto e o bandido, desarmado, malandro, saíra correndo e pedindo desculpas ante a visão da arma, e isso deu ensejo a uma discussão sobre prós e contras no que diz respeito a reação em caso de assaltos armados que durou todo o nosso aquecimento durante a aula. Depois da aula, meio que sob este clima, guardamos a saída uns dos outros. Eu gritara o Wesley (vide matéria sobre o "kickboxe" do applied wing chun) dizendo que o carro dele ficara muito distante da academia, enquanto Eduardo tirava o seu próprio veículo, tendo esperado até que Wesley fosse embora para seguir seu caminho.
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"Marcos, Tenho uma notícia não muito legal para te dar". Era meu advogado. Logo pensei que era a família de minha filha mais velha tentando levar-me ao cárcere novamente. Por mais que diabos ligaria tão cedo?
"Marcão, Eduardo foi assaltado e baleado ontem à noite, levou quatro tiros e está no Hospital Geral". Estou aqui, doando sangue." "Merda, merda! Você está variando, homem? Eduardo estava treinando aqui ontem à noite, falamos disso a noite toda!". "Então você foi a última pessoa a falar com ele antes do ocorrido. Disseram-nos que ele está estável. Venha para cá". Eu fui. E, no caminho, mil pensamentos assomavam, eu sentia uma culpa tremenda, foi algo surpreendente, e eu era seu guia nas artes marciais, eu era o culpado por isso ter ocorrido. A escola estava em maus lençóis, e Eduardo era um dos que estavam ajudando a segurar a onda, pagando as mensalidades mesmo sem frequentar o Mo Gwun. No meu aniversário, dias atrás, dera-me por presente a trilogia de Matrix, que soube que eu adorava. Eu tinha consciência plena do grande ser humano que tínhamos ali mesmo antes disso acontecer, E quando me vi, lá estava eu deitado na maca, doando sangue com um outro colega de classe de meu irmão no colégio, Breno, doando sangue. Conversamos rapidamente. "E aí, Marcão, você continua 'Shaolin', como na época da escola, ou desistiu?" "Não desisti, e essa é precisamente a fonte de todos os meus problemas", limitei-me a dizer. Logo após isso, ele atendeu um telefonema. Seu rosto repentinamente empalideceu, mudou e murchou e ele começou a chorar em pequenas convulsões de desespero. "Ele morreu", disse. Saímos ao hospital, e quando percebi que nunca mais veria meu amigo, chorei, e chorei como não chorei quando perdi, um a um, os meus avós.
Aos poucos fui sabendo dos detalhes, embora talvez nunca iremos saber o que fato ocorreu naquela noite. Eduardo fora rendido ao descer do carro para abrir a garagem de casa. Ato reflexo, ao levantar os braços teria aparecido a arma na subida da blusa, e ele teria sido identificado como policial. Outra versão defende que um dos bandidos teria visto uma das armas dentro carro. Como me disse Gustavo durante o enterro, este tipo de situação é particularmente dramática, pois o ladrão pensa "Tenho de matá-lo, pois caso contrário serei perseguido e morto". Por seu turno, o policial pensa: "Ele vai me matar pois sou policial, talvez se eu tentar algo eu tenha uma chance".