Treinar forte depois de velho, trabalho doloroso. Depois de praticar três vezes os 108 Muk Yam Jong e mais oito rounds pela manhã, não resisti à tentação e fui boxear à tarde.
À primeira a vista a foto acima, em que fui pego meio distraído descansando junto a meu boneco após prática de drills de luta, parece destoar um pouco. Mas foi justamente este contraste, ou melhor, essa íntima complementariedade, que vou provar logo mais ao longo do artigo, que motivou esta matéria. Muito embora o boneco de madeira do Wing Chun, o Muk Yam Jong (木人樁) seja talvez um dos aspectos mais curiosos e fascinantes da prática de Kung Fu para o público leigo, aparecendo com frequência em séries e filmes de artes marciais para a satisfação de praticantes de qualquer estilo de luta, parece ser um pouco estranho estar todo paramentado para sparring perto de um boneco que não irá reagir a seus movimentos. Entretanto, quando alguém imagina para que serve este instrumento, tanto leigos como até mesmo alguns praticantes avançados e instrutores (!) tendem a imaginar que estamos numa terrível e excruciante luta contra o mesmo, espancando-o sem dó em um (suposto, na maioria das vezes) show de habilidade e velocidade, e não raro tendemos a achar vídeos de pessoas lidando assim com ele.
A gravura faz uma piada, mas reflete como os praticantes de Wing Chun veem o Muk Yam Jong.
Em meu perfil do Facebook as pessoas vem me perguntar, por exemplo, para que serve o "terceiro" braço, e ainda não menos raro eu respondo com a piada do seringueiro, o que mesmo choca alguns não acostumados comigo, tal é a sanha e mesmo fetiche de alguns ao insistir em possuir um exemplar em casa, tal qual aqueles que tem uma esteira ou bicicleta ergométrica no quarto e acham é que a questão é apenas estar sobre os mesmos e se mexer até cansar, sem maiores preocupações sobre o porquê e como usar o boneco de madeira e o que a sua prática irá trazer de mudanças efetivas para a prática de luta livre.
Evitei até hoje aprofundar-me neste assunto devido à dificuldade de se abordar o mesmo, preferindo falar indiretamente dele para ilustrar alguns conceitos, ou melhor, o que "não fazer" quando se trata se usar o equipamento. Fiz uma critica à visão que os leigos tem do uso do boneco associando-a à alienação promovida por parte das escolas do Wing Chun em prol de visão de combate muito distante da realidade aqui mesmo neste blog, no texto: O Robô Wing Chun aqui e a Cabeça Pensante e não pensei em voltar ao tema senão depois de ter colocado um aparelho de alto padrão em minha escola - bons bonecos são raros ainda no Brasil - e praticar mais constantemente do que já fazia, mas não havia imaginado como abordar o tema. Em um artigo chamado Por que o "treino" de Anderson Silva com o Boneco de Madeira não é tão ruim para o Wing Chun? em meu website fiz também uma crítica da repercussão negativa do fato do fenômeno do MMA ter sido filmado ensaiando alguns movimentos canhestros no mesmo algum tempo atrás.
Até que semana passada, no meu treino pessoal que visa a adaptação esportiva do Wing Chun às lutas de ringue com meu aluno e campeão de Muay Thai, João Gilberto, para melhorar o desempenho de meus atletas de MMA, a seguinte situação ocorreu durante a "trocação", aquela troca franca de golpes que por vezes ocorre (e que nós do Wing Chun devemos evitar gratuitamente) em luta:
Durante a aproximação João joga um cruzado com a mão da frente, visando começar um "combo" que segue normalmente com direto de direita ou mesmo canelada, por isso mesmo os cruzados no Muay Thai tendem a ser mais abertos que os do boxe, por exemplo. Na segunda foto, ao "ver" (na verdade, se não estiver muito treinado, "ver" apenas não funciona, como abordarei adiante,e no segundo artigo, por isso grave isso!) o golpe chegando cubro automaticamente com um Tan Sao (攤手), para fechar a área aberta, neste caso podendo chama-lo, neste caso, de Gau Sao (救手), Mão de Socorro, como pode ser visto, para ficar só em um exemplo simples para iniciantes, na segunda parte do Sil Lin Tao (小念頭), a primeira forma do sistema, seguindo a mão livre para a frente (terceira foto)após a defesa. Depois do sparring deste dia, como se a mesma movimentação tivesse se seguido algumas vezes, discutimos opções para que eu desse sequência à situação e aproveitasse o contra-ataque surpresa combinando com alguma outra coisa pois, ao contrário do que boa parte dos wingchuners pensam, ninguém mata ninguém com um só golpe. Este tipo de defesa, só pra constar, é extremamente sofisticada e uma necessidade quando se confronta lutadores de ringue, uma vez que o soco tradicional do sistema Wing Chun vem de baixo para cima, o que nos deixa frequentemente expostos a golpes que vem do alto. Infelizmente a maior parte dos lutadores de Wing Chun negligencia este fato, pois estão preparados apenas para defender de golpes de outros lutadores de Wing Chun.
Quando, ao cair da noite do mesmo dia, eu praticava a sequência formal do boneco de madeira antes de receber meu alunos para a aula da noite, despreocupadamente, enxerguei a mesma situação da manhã durante a prática da nona seção do mesmo, segundo a sequência abaixo:
Quando, ao cair da noite do mesmo dia, eu praticava a sequência formal do boneco de madeira antes de receber meu alunos para a aula da noite, despreocupadamente, enxerguei a mesma situação da manhã durante a prática da nona seção do mesmo, segundo a sequência abaixo:
Jong Sao
Tan Sao
Wang Jeang
Bong Sao
Tan Da Chai Gerk
Acredito que seja fácil para o leitor, mesmo o leigo, identificar a situação que ilustrei acima nas três primeiras fotos, mesmo que nesta aplicação espontânea em luta as mãos estejam mais altas. Talvez se eu mostrar o exercício formal de reflexo tátil do Wing Chun, o Chi Sao, em sua forma Tang, unilateral, isso fique ainda mais claro:
Hoi Moon Tan Sao
Wang Jeung
Nas fotos acima eu redireciono o braço de João para fora, criando um espaço que invado na sequência com uma das Cinco Palmas do sistema Wing Chun, Wang Jeung, Tanto na sequência do Chi Sao quanto na forma do boneco de madeira podemos fazer uma analogia com os métodos do Tai Ji Quan uma vez que a ideia é redirecionar a força vindoura de forma suave e com o mínimo de força. Nos dois casos o Tan Sao é feito com um pequeno "gancho" que visa evitar que o oponente consiga dar a volta por cima do seu golpe com facilidade, obrigando-o a fazer um círculo ainda maior que o necessário, o que nos dá tempo suficiente para golpear com facilidade em linha reta, a via preferida do lutador do sistema.
A soma de diferentes treinamentos, simbólicos, de reflexos e uma adaptação para luta com uma técnica montada e repetida centenas e centenas de vezes é que dá a memória muscular necessária para improvisar de forma natural como neste caso que aconteceu como resultado de minhas experiências como praticante e que quis dividir com vocês por aqui. Simplesmente esperar que aconteça na luta nunca funcionará, talvez somente nas raras situações onde temos tempo para fazer bloqueios. Mas bloqueios são lentos e quase nunca funcionam. Gravem isto.
Entretanto, mesmo acreditando ter explicado a situação que motivou a feitura de artigo, ainda não saímos do lugar comum da interpretação do uso do boneco de madeira, uma vez que podemos ainda visualizar a mesma ainda de certa forma como uma luta contra o "Homem de Madeira". Mas e o resto da sequência da nona seção da forma Muk Yam Jong que apresentei acima, qual seria a aplicação em luta da mesma? Será assim tão óbvia de demonstrar um exemplo corriqueiro, literalmente? Se você leu este artigo e os demais que coloquei nos links acima já está familiarizado com minha crítica à prática do boneco associada às vias de fato contra um oponente imediato. Não pretendo aqui, de forma alguma, escrever algo definitivo sobre os 108 movimentos do Muk Yam Jong, o que seria objeto de um livro. Mas acredito totalmente que na segunda parte do artigo eu possa tirar boa parte das dúvidas sobre o assunto e fornecer uma boa luz para os praticantes de Wing Chun de qualquer linha que queiram trazer o treinamento para um outro nível e fazer da prática no boneco mais do que um ritual exótico e imbecil de prática física e suor sem resultados práticos em luta livre.
Continua...
A soma de diferentes treinamentos, simbólicos, de reflexos e uma adaptação para luta com uma técnica montada e repetida centenas e centenas de vezes é que dá a memória muscular necessária para improvisar de forma natural como neste caso que aconteceu como resultado de minhas experiências como praticante e que quis dividir com vocês por aqui. Simplesmente esperar que aconteça na luta nunca funcionará, talvez somente nas raras situações onde temos tempo para fazer bloqueios. Mas bloqueios são lentos e quase nunca funcionam. Gravem isto.
Entretanto, mesmo acreditando ter explicado a situação que motivou a feitura de artigo, ainda não saímos do lugar comum da interpretação do uso do boneco de madeira, uma vez que podemos ainda visualizar a mesma ainda de certa forma como uma luta contra o "Homem de Madeira". Mas e o resto da sequência da nona seção da forma Muk Yam Jong que apresentei acima, qual seria a aplicação em luta da mesma? Será assim tão óbvia de demonstrar um exemplo corriqueiro, literalmente? Se você leu este artigo e os demais que coloquei nos links acima já está familiarizado com minha crítica à prática do boneco associada às vias de fato contra um oponente imediato. Não pretendo aqui, de forma alguma, escrever algo definitivo sobre os 108 movimentos do Muk Yam Jong, o que seria objeto de um livro. Mas acredito totalmente que na segunda parte do artigo eu possa tirar boa parte das dúvidas sobre o assunto e fornecer uma boa luz para os praticantes de Wing Chun de qualquer linha que queiram trazer o treinamento para um outro nível e fazer da prática no boneco mais do que um ritual exótico e imbecil de prática física e suor sem resultados práticos em luta livre.
Continua...
10 comentários:
Belo artigo!! Parabéns pela dedicação e interesse em dividir essas informações com muitas pessoas tanto os leigos como os também praticantes!!
Valeu!
Caro Prof. Rogério,
Obrigado pelo retorno positivo. Wing Chun é minha vida. As muitas horas de treino e estudo diários, os combates com praticantes de outros estilos fora de minha academia, a orientação que dou a leigos e praticantes para desenvolver seu potencial pessoal são coisas que fluem naturalmente deste amor à arte. Tudo o que faço é Wing Chun. Não acredito em quem esconde conhecimento, tampouco em quem o dá sem qualquer reserva.
Fui muito ajudado durante toda a minha carreira por amigos e alunos. Eu não teria fechado o sistema, viajado à China, escrito livros ou tido tranquilidade e material humano para treinar sem eles. É minha obrigação dar algo de volta.
Um grande São João para você.
Muito bom. Muito claro!
Meus parabéns pelo artigo Sifu, está muito bom, nota-se que a evolução não está somente como lutador mas também como escritor.Eu me sinto honrado em fazer parte da sua escola e na obrigação de tecer breve comentário sobre a questão da repetição, como praticante dessa arte já há 18 anos pufe perceber a importância de repetir e repetit,repetit ainda maid, isso dá certo.
Como Médico Neurologista posso esplicar o porquê de isso funcionar. Quando repetimos muitas e muitas vezes uma sequência de movimentos simples ou complexo cria-se um caminho sináptico, uma série de neurônios conectados entre si e que podem ser ativados por qualquer movimento que tenham alguma ligação com eles, isso esplica como os movimentos se tornam automáticos.
Espero ter sido útil,
Vansembergues.
Obrigado, Sérgio, que bom que tenha gostado e entendido, era esta a minha expectativa.
Forte abraço aqui de seu SiSok da Bahia, rs.
Obrigado, Dr. Vansembergues! Aquelas nossas conversas sobre coordenação motora de regiões a que não estamos acostumados na prática de Wing Chun muito ajudou na visão que tenho hoje sobre as vantagens que o aprendizado do sistema traz para praticantes de artes marciais.
Também tenho orgulho de ter sido seu instrutor, lhe formado primeiro mestre do Brasil da segunda geração de Sifu e sermos hoje parceiros de treinos e amigos acima de tudo.
Forte abraço e obrigado por ter vindo aqui e opinado, pois sei que é um homem muitíssimo atarefado, mal tendo tempo para os treinos!
Mais um grande artigo de SiFu que já está devidamente impresso e arquivado em meu material de estudos particular! Fico aqui pensando cá com meus botões dentro da visão limitada que ainda tenho do sistema e sabedor de todo o veneno que SiFu e meus irmãos de kung fu tem em seu jogo, o quanto de maldade pode ser posto em ação quando este primeiro golpe, tão imediato que é para um lutador que espera sempre o ''um-dois'' do adversário, vai tomar depois de ser surpreendido dessa forma. Ansioso pela segunda parte!
Dido, você sabe o que espero de você: que esteja aqui por um período mais ou menos extenso, o quanto antes, para que comece a deixar de ser apenas um mero "imitador" de gestos técnicos, como tem muitos por aí - e acho que você é o melhor de todos eles - e comece a grande e dolorosa jornada para o estágio final das AMC (artes marciais chinesas) que é transformar toda a simbologia técnica em expressão viva em luta. Não será fácil. Será um caminho cheio de dor, frustrações e mesmo desespero em alguns momentos. Mas ninguém poderá tirar o que é seu. Espero que em pouco tempo você esteja no mesmo nível de meus alunos mais avançados e possa dizer de si próprio "sou um lutador de Wing Chun". Espero ainda que, como escola, estejamos mais perto e que você aprenda com seus irmãos a fazer uma grande escola de artes marciais que estamos começando, mesmo que talvez não da forma que imaginamos, mas sem máculas, com a consciência tranquila de que fizemos o certo, o honrado, o justo. Grandeza não se compra se conquista.
Abraço,
Sifu.
Muito bom, Si Fu. Maduro, claro e esclarecedor. Considero me um estudante do sistema Wing Chun e recebo de maneira muito bem vinda seus textos. Nossa escola dá saltos cada vez maiores pois todos veem que nos treinamos forte e tambem estudamos. Não somos melhores por sermos mais, arrogantemente falando. Somos fortes e respeitados pois somos muito bem orientados.
Parabens, meu velho.
Roger
Devo apresentar em breve a segunda parte, Roger. Obrigado pelo apoio que tem dado a todas as minhas publicações. Isso tem um grande valor para mim.
Abraço,
Sifu.
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