Antes de terminar a última parte de meu artigo sobre a falácia da "Defesa Pessoal" e a propósito de uma recente postagem na comunidade Wing Chun - Brasil do Facebook que mostra o curioso e muito bem-feito vídeo exibido no link acima, pensei em fazer uma crítica por lá, mas como de forma geral as pessoas criticam meus textos imaginando que tudo que escrevo é uma ofensa a determinada pessoa ou escola, resolvi fazê-lo por aqui. Embora eu não saiba - ainda bem - a qual escola pertence o autor do vídeo, pude ler a descrição de como a idéia original foi concebida no link original no YouTube, e pude perceber o quanto esse cara ama Wing Chun. Mas destarte o vídeo em si ser muito bacana e motivador, quando o vi, alguns anos atrás, tive a mesma impressão que tenho ao vê-lo hoje - e ainda mais depois ter estudado a teoria de aplicação da arte com o meu SiGung (Avô-KungFu) Duncan Leung no ano seguinte à sua publicação - que este vídeo é representativo de um emblema de uma visão da arte limitada, utópica e pouco-funcional. Evidentemente, essa é a minha opinião, mas convido você a racionar comigo e ver se a critica é ou não pertinente.Eu que já havia feito uma critica sobre este mesmo vídeo na página social Orkut, e indeciso sobre opinar ou não no Facebook ouvia ontem de um aluno elogios rasgados ao vídeo, empolgado como geralmente ficam as pessoas ao vê-lo (vide comentários no link original do YouTube), sendo que isso me motivou a escrever.
Treinar com robôs ou máquinas, ou fazê-las mimetizar os movimentos humanos é uma idéia muito antiga. Referências a uma suposta câmara cheia de bonecos de madeira pelos quais o monge teria passar para sair do templo Shaolin são comuns a livros e filmes antigos de artes marciais e mesmo os bonecos reais de treinamento, dentre os quais o do boneco de madeira do Wing Chun é aquele mais se pareceria com um ser humano, e por isso mesmo muito conhecido do público. Nos anos sessenta chegou a ser desenvolvido um robô para treinar boxeadores, mas a idéia parece não ter ido muito adiante, e embora ainda possam ser vistos projetos semelhantes, não creio que substituam ainda um bom sparring com alguém se mexendo de verdade. No caso deste vídeo, é o robô que faz as vezes do praticante, e o que seria o boneco de madeira fixo (no chão e/ou parede) do Wing Chun, Muk Yan Jong, é que tem a chance do revide depois séculos apanhando de 108 maneiras diferentes.
A primeira e mais marcante observação que fiz quando vi o vídeo pela primeira vez é que o robô não tem pernas. Uma arte oriunda do templo Shaolin, o Kung Fu de Wing Chun tem bases que pela força da especialização ficaram mais curtas que a fórmula que consagrou a maior parte das lutas alegadamente vindas deste templo e que deram origem ao Hung Gar (China), Karatê (Japão) e Hapkidô (Coréia), só para citar três entre centenas delas, e que mantem mais ou menos o mesmo sistema de base, com pequenas diferenças estilísticas. No Wing Chun, para horror dos mestres de estilos mais tradiconais, a base tornou-se algo neglicenciado, tanto quanto instrumento para geração de força, quanto como suporte para manutenção do equilíbrio, mobilidade e por que não dizer, absorção de golpes. Porque lutadores de Wing Chun supõem nunca serem atingidos, e talvez por isso mesmo o protótipo do vídeo também incrivelmente não tenha uma cabeça para ser golpeada (!!!), embora o Wing Chun, talvez pelo estilo de socar, precise se uma para servir-lhe de alvo obrigatório.
Mas o fator principal que faz com que o vídeo se torne um retrato simbólico de como vemos a nossa arte nessa época é que, à exceção de alguns giros, tudo o que o robô faz é defender com perfeição todos os golpes que lhe chegam. Exatamente como em 98% dos vídeos de demonstração onde os professores tem uma resposta lógica e pronta para cada golpe: se você me golpeia aqui eu defendo e já bato do outro lado, e você tenta algo eu respondo, nenhum golpe me escapa, mas à exceção de nossos braços, nada mais se mexe, ficamos com o corpo ereto, cabeça irremediavelmente parada, queixo pra cima, sou o grande sábio que tudo vê, que tudo defende. Não há andar para frente ou para trás, apenas troca de golpes na curta distância, ao modo como fazemos no Chi Sao (exercício de reflexo Braços Grudados) e sempre nos impressionamos com a genuína habilidade da maior parte dos mestres, mas no fundo ficamos na dúvida de como seria isto se nada fosse combinado, e as pessoas se mexessem à vera. Ou não. No wing chun, somos educados para aplaudir, não para pensar, e neste ponto a falta da tal cabeça lá talvez também tenha mesmo um sentido mais amplo...
4 comentários:
Realmente Sifu, é isso que ocorre. Depois do meu treinamento passei a ter certeza de que utilizar o reflexo como principal meio de defesa em um combate é bem arriscado. Wing Chun é estereotipado exatamente como citado no texto, defesas para todos os ataques e a realidade é bem diferente.
Parabéns por mais este artigo que acaba se tornando mais uma aula de forma indireta.
O "detalhe" da cabeça e dos pés me passou bem despercebido, e aposto que passaria muito mais vezes...
E olhe que, pelo meu porte leve, o footwork sempre foi algo que enfatizei nos meus treinos -justamente pelos motivos que elenca- especialmente no meu tempo de Kyokushin e, agora, de Sanshou.
A movimentação de braço do Wing Chun é realmente bem fascinante, e deve ser a causa desse atordoamento! Nada como uns jabs para nos fazer acordar pra realidade. rs...
Interessante como compramos as idéias sem nem mesmo olhar para a cara delas! Obrigado pelo texto Sifu!
Como sifu mesmo disse;esse treinamento com aparelhos - e acredito que qualquer treinamento com algum aparelho - não substitui uma boa prática com um bom lutador fazendo sparring e atacando firme. Infelizmente, ainda existe muito estereótipo e muitas idéias pré-concebidas de como o lutador de wing chun se comporta e se move, o que na realidade, é totalmente o oposto daquilo que hoje,é o produto do comercial da ''arte marcial infalível,mais rápido e eficiente estilo de kung fu''. Embora o video tenha uma boa qualidade audio-visual, pra mim,ao menos, só incentiva o fetiche em cima do que ''seria'' a arte e não do que ela o é de fato.
Dido.
“Exatamente como em 98% dos vídeos de demonstração onde os professores tem uma resposta lógica e pronta para cada golpe, se você me golpeia aqui eu defendo e já bato do outro lado, e você tenta algo eu respondo, nenhum golpe me escapa, mas à exceção de nossos braços, nada mais se mexe, ficamos com o corpo ereto, cabeça irremedialvemente parada, queixo pra cima, sou o grande sábio que tudo vê, que tudo defende”
Muito bom esse seu comentário acima, falou tudo!
Enquanto os lutadores de wing chun ficarem estáticos como uma vara torta em combate irão apanhar para outros estilos de artes marciais como já ocorreu, pelo simples fato de um combate não ser algo estático mais sim dinâmico e imprevisível em que o lutador deve saber se moldar a luta. Ciente
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